Um poema de Gunnar Reiss-Andersen:
UM POEMA NÃO ESCRITO
Um longo e luminoso desespero enche o mês de maio.
A vida quer impor-nos uma luz e uma felicidade
maiores do que somos capazes de receber.
Por isso anda por aí um luminoso desespero como um
menino pobre obstinado,
de súbito vestido de seda azul celeste da qual não é capaz de
se livrar –
por muito que trema de medo. De medo da felicidade.
Ontem sonhei que ia morrer –
numa cidade como uma grande flor outonal,
cheia do decadente esplendor nocturno de setembro –,
a Paris e a Viena da minha juventude, um pesadelo açucarado.
O ar misturado com metal, com sabor a sangue e apodrecido
até à medula.
Eu ia morrer, íamos morrer –
vítimas de um plano militar.
Havia pequenas unidades tombadas nas esquinas das ruas –,
totalmente preparadas para jazerem mortas.
Os oficiais estavam de pé, envergonhados e quase com lágrimas nos
olhos.
E tanto este como aquele viram-no, sem nada dizerem,
quando deslizei pela esquina e desapareci.
Embrenhando-me na noite de malha de bronze de lâmpadas
apagadas
e um enredo de abundâncias decadentes de que ninguém se ocupava já.
Sempre se cumprem os sonhos de quem sonha com a morte.
Mas eu acordei esta manhã e estava vivo.
Fugitivo da morte do sonho, uma morte equívoca.
Li sobre as costas dos oficiais, li em olhares fugitivos.
Desertar é vergonhoso, mas a morte sonhada, a morte equívoca
é a vergonha mesma. É a vergonha mesma.
Mas esta manhã acordei e estava vivo.
E do outro lado da janela estava a bétula, verde.
Dizemos verde apesar de sabermos que existe outra palavra,
outra palavra mais profunda. A mesmíssima contra-senha do verde,
essa palavra que faz com que o verde nasça no inverno.
Como a água da rocha do deserto. Moisés! Moisés! Com a sua túnica
De verde musgo.
A pele molhada. No oceano de ardósia.
Verde, verde... Mas a contra-senha do verde, a palavra radiante! A
palavra original!
Diz a palavra verde, di-la por necessidade, pela tua morte certa. E é
Como se tu o acredites.
A bétula estava ali , verde. Acordei e estava vivo,
vergonhosa e imerecidamente vivo. Erva de terra, luz de escuridão.
Vida em troca de um mau sonho, um inverno sofrido, sobre
premissas falsas.
Uma lista arrancada de uma fina película húmida colada ao olho:
Vacilantes e envergonhados portadores de cadáveres em escuros capotes
de oficial.
Eu tinha esquecido a palavra, a contra-senha do verde.
Tinha deixado que o segredo morresse às escondidas.
Através da longa e mortiça catástrofe do inverno
com os olhos cheios de neve eu não tinha visto
aquela bétula, erguendo-se como um riacho verde vertical de primavera.
Verde, verde! Amarelo e azul numa vivíssima mescla vital,
pronto para sair em torrentes no grande azul, o novo azul
que constantemente invoca que desçam jorros de amarelo novo
do sol.
Assim Deus pinta o verão. Moendo as estrelas em moinhos de cor.
Estrelas e noites. Amarelo e azul a jorros. Oh Niagára -,
mamutes que pisoteam e danças de arco-íris!
Pós amarelos e azuis, misturados com chuva. O azeite do sol.
E diligentes pincéis, dia e noite. Suave arroz de cometa e nuvens
matutinas.
***
Mas eu tinha deixado morrer o segredo às escondidas.
Versão minha - © Amadeu Baptista
Gunnar Reiss-Andersen, poeta norueguês, nascido em 1896. Estudou pintura em Copenhage e Paris. Durante vários foi ilustrador no jornal Arbeiderbladet, de Oslo. O seu primeiro livro de poesia, Indvielsens aar, data de 1921. Durante a Segunda Guerra Mundial, pertenceu à resistência norueguesa, tendo, em 1942, partido para a Suécia, para evitar ser feito prisioneiro pela Gestapo. Publicou inúmeros livros de poesia, além de romance, ensaio, narrativa de viagens e autobiografia. Faleceu em 1964.
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