quinta-feira, 7 de julho de 2011

Isabel Cristina Pires


Isabel Cristina Pires, poeta convidada


4 poemas inéditos de Isabel Cristina Pires:


DIAS DE LUME

A tarefa da infância é estar apaixonado,
atirar-se em viagem pelos livros e engolir
relâmpagos. A tarefa da infância
é nada saber e não haver limites
à bebedeira dos meses - armazéns de horror,
magia e toque. Não há na infância
a linha reta do início, apenas
o sibilar que traz consigo o tempo.

A forma dos dedos, das folhas, das palavras,
a luz inventada pelo brincar, o clarão
estendido dos dias em cascata,
projetam-se lá fora e ficam
imóveis, borbulhando.

Todos os dias de lume são a infância. E todos
são herbários que secam para sempre -
a certa altura, os outros e nós mesmos consentimos
no fim. Um dia, começa a haver um ontem.




OLIVEIRAS

É tempo de respigar o verão.
De ouvir o rolar das azeitonas e
a alma húmida das árvores –
quando as oliveiras envelhecem sob o musgo
e nos obrigam ao raso amor da terra.
Ao amor do azul por entre os ramos, retalhado
de nítido metal, ao som dos olivais
que nos param no cinzento da distância.
Uma oliveira nunca nos consente: está
afogada em tempo. Respira
para que respiremos com ela esse destino
do roxo, do túmido azeite cintilante.
Permanece na água da secura. Permanece.



ILHA DESERTA

O fel de agosto é rosa imperdoável,
e vejo as hastes dos narcisos pálidos na areia
e o tomilho que toma conta da minha alma
e voa com ela até ao mar.
Os ninhos amarelos não são de aves, mas
do espaço imenso que há nas dunas, os
mundos de um mundo cortado
em arco-íris. É assim que as mãos me conduzem
à ilha Deserta, a ilha dos espíritos tombados, da falta
de agonia, do silêncio sem espera. É assim que os pés
me descobrem peixes mortos, conchas e moliço.
Vou e venho no deserto de aromas em cima dos meus passos.
Suspendo a tarde nos olhos que se enterram como cães
e todo o mar em volta fica plano, desconexo, atento
à sentinela da costa. As casas em ruína, a história pérfida
dos homens, as vozes que ali falaram,
ficam traços brancos
como eu.



ALEA JACTA EST

Se te lançares em pleno amor
as palavras da água são diferentes
e a coragem de perder deve estar perto.
Se consentires no sal que tudo ilude,
abre bem os braços e as mãos
para que nada escape ao crucifixo, à
queda selvagem dentro de outro. Conta
as folhas do milagre e pronuncia outono,
 assimila os longos olhos das palavras
e perde, perde tudo. Abre e fecha a boca
como um peixe que em breve irá morrer.
Depois, procura um som que nunca ouviste,
e cai.





Isabel Cristina Pires nasceu na Pampilhosa, a 20 de Agosto de 1953 e licenciou-se em Medicina em Coimbra, em 1976. Psiquiatra, foi Chefe de Serviço no Hospital Psiquiátrico do Lorvão, onde exerceu o cargo de directora clínica. Encontra-se actualmente aposentada. Desde 1987 que publica regularmente prosa e poesia, na Editorial Caminho: Universal Limitada, 1987 (contos, prémio Caminho de Ficção Científica e prémio Revelação, da revista Mulheres); A Árvore das Marionetas, 1989 (romance); A Casa em Espiral, 1991 (contos); A Roda do Olhar, 1993 (poesia); À Porta de Nárnia, 1995 (poesia); Cobra de Papel, 1997 (poesia); Todas as Cores do Azul, 2001 (poesia); O Nome do Poeta, 2003 (romance); Deserto Pintado, 2007 (poesia).


Fotos: © de Amadeu Baptista

1 comentário:

  1. tenho um texto sobre um livro da Isabel Cristina Pires. Escrita talentosa. E esta sua página está fantástica, Amadeu, eu tinha de o dizer.
    TSC

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