domingo, 12 de junho de 2011

Edvard Munch


EDVARD MUNCH: O GRITO (1893)

Por aqui,

descem-se estas escadas
que a esquadria delimita
e os fungos verdes invadiram,

e depois volta-se
à direita.

Depois há o mar,
com tons roxos e escarlates,
como colchas nas varandas
quando há festa.

Depois,
sobe-se, de novo,
e há um  fulgor repentino,
como se o mar ficasse preto
e  vibrasse:

o rosto espera-nos.

Depois, há fumo,
sabe-se que há fumo,
e os braços levantam-se acima da cabeça
e respirar é um tormento:

não é uma figura da tragédia,
não é, tão pouco, Caronte,
olha-se o rosto e sentimos o coração
na boca,

as algas que se enredam
ao pescoço,
uma estrela amarela no braço,

a estender-se pelo firmamento,
em Oslofjord, ao pôr-do-sol.

No mar e no céu
há nuvens brancas,
e um odor intenso a especiarias,
talvez o odor da morte,

e escuta-se um leão a rugir,
enquanto se não sabe onde pôr as mãos,
se a salvo,
a cobrir os olhos,
ou dentro de água.

E com o rugido do leão
escutam-se os barcos,

e a pintura é a infância,
e arde,
infinitamente,

onde está um rapaz em frente de um cavalete
a preparar a água para pintar uma aguarela.

O rapaz diz:
eu não pinto aguarelas,
o que faço com a tintas
sou eu a chorar,

e, então,
voltamos, de novo, à plataforma,
com as gaivotas a uivar,
como lobos.

Depois, mais para a frente,
há sombras:

sombras de panos brancos

  e os panos incendeiam-se
por combustão espontânea,
e há mulheres que gritam por socorro
e homens atarefados a recolher as redes,

os peixes.

Os peixes voam:

e é possível vê-los voar sobre as nuvens,
e a plataforma balança com a força das ondas,
enquanto alguma coisa pica
o sangue
e se enovela na garganta.

Aí começa o túnel:

em dois passos a escuridão cerca as escadas
e não é possível voltar atrás,
os cães são
os guardiães do caminho,

– desse caminho –,

e uivam lancinantemente,
alucinadamente.

Vêmo-los postos ali
e são cães translúcidos,
são cães azul glaciar,
azul lazurino,
branco de mármore,

e estão a invadir a plataforma,
enquanto o gelo
invade os degraus,
e a neve cai,
em blocos.

Procuro o homem no seu exacto lugar,
e os barcos voltam a Oslofjord,

e as velas estralejam,
uivam as sirenes,
como cães.

Procuro o homem no seu exacto lugar:

– tudo isto não é mais que um esboço,

nos meus cadernos há carvões assim,

onde procuro desassossegar a morte
e o seu frio glaciar,
e os degraus das escadas do inferno não têm fim.

Verde, vermelho, ocre: o céu.

E a linha transversal ao quadro
conduz o olhar ao túnel,

e tudo é negrume,

um negrume audível,
em que há pedras que voam,
há a solidão do mundo,
há uma verdade
que é como a morte,
uma verdade que antecede o último suspiro.

A têmpera conduz a paisagem,
é leve

  tão leve que é insuportável,
com a vedação por trás,
e a erupção vulcânica
na cabeça da figura,
só,
desesperada.

De novo os barcos regressam a Oslofjord,
sobem-se a escadas que os fungos invadiram,

e volta-se à esquerda,
e, depois, à direita:

e a lonjura
é toda a expectativa do quadro.

Mais do que o desespero,
a lonjura ramifica-se em partes iguais
em todas as direcções,
povoa a luz e as sombras,
os barcos, ao longe,
o frio,
o gelo azul.

Dois passos na plataforma
não alteram o ponto de visão

  a cabeça é uma cabeça de gesso,
fria como o gelo azul,

insuportável
naquelas cores difíceis,
naquelas cores inclinadas para o mar,
íngremes,
rasgadas sobre o céu.

Este homem, é quem?

O meu pai, há tanto desaparecido,
que não tem memória de mim
e eu não tenho memória do seu nome?

E esta mulher, quem é?

A minha mãe,
que me embala nas escadas
e me dá o seio, com um cobertor vermelho
cobrindo-lhe o regaço?

Estou exausto e pinto,

é sobre um cartão que pinto,
e a têmpera é uma estrela amarela
sobre a plataforma,

e eu sou um menino,

um menino perdido na escuridão,
com o seu bibe encarnado
e os seus lápis de cor
a transpor a vedação,
enquanto as gaivotas uivam
sobre a minha cabeça

e os barcos regressam a Oslofjord.


(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, CMSintra, 2009)

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