EDVARD MUNCH: O GRITO (1893)
Por aqui,
descem-se estas escadas
que a esquadria delimita
e os fungos verdes invadiram,
e depois volta-se
à direita.
Depois há o mar,
com tons roxos e escarlates,
como colchas nas varandas
quando há festa.
Depois,
sobe-se, de novo,
e há um fulgor repentino,
como se o mar ficasse preto
e vibrasse:
o rosto espera-nos.
Depois, há fumo,
sabe-se que há fumo,
e os braços levantam-se acima da cabeça
e respirar é um tormento:
não é uma figura da tragédia,
não é, tão pouco, Caronte,
olha-se o rosto e sentimos o coração
na boca,
as algas que se enredam
ao pescoço,
uma estrela amarela no braço,
a estender-se pelo firmamento,
em Oslofjord, ao pôr-do-sol.
No mar e no céu
há nuvens brancas,
e um odor intenso a especiarias,
talvez o odor da morte,
e escuta-se um leão a rugir,
enquanto se não sabe onde pôr as mãos,
se a salvo,
a cobrir os olhos,
ou dentro de água.
E com o rugido do leão
escutam-se os barcos,
e a pintura é a infância,
e arde,
infinitamente,
onde está um rapaz em frente de um cavalete
a preparar a água para pintar uma aguarela.
O rapaz diz:
eu não pinto aguarelas,
o que faço com a tintas
sou eu a chorar,
e, então,
voltamos, de novo, à plataforma,
com as gaivotas a uivar,
como lobos.
Depois, mais para a frente,
há sombras:
sombras de panos brancos
– e os panos incendeiam-se
por combustão espontânea,
e há mulheres que gritam por socorro
e homens atarefados a recolher as redes,
os peixes.
Os peixes voam:
e é possível vê-los voar sobre as nuvens,
e a plataforma balança com a força das ondas,
enquanto alguma coisa pica
o sangue
e se enovela na garganta.
Aí começa o túnel:
em dois passos a escuridão cerca as escadas
e não é possível voltar atrás,
os cães são
os guardiães do caminho,
– desse caminho –,
e uivam lancinantemente,
alucinadamente.
Vêmo-los postos ali
e são cães translúcidos,
são cães azul glaciar,
azul lazurino,
branco de mármore,
e estão a invadir a plataforma,
enquanto o gelo
invade os degraus,
e a neve cai,
em blocos.
Procuro o homem no seu exacto lugar,
e os barcos voltam a Oslofjord,
e as velas estralejam,
uivam as sirenes,
como cães.
Procuro o homem no seu exacto lugar:
– tudo isto não é mais que um esboço,
nos meus cadernos há carvões assim,
onde procuro desassossegar a morte
e o seu frio glaciar,
e os degraus das escadas do inferno não têm fim.
Verde, vermelho, ocre: o céu.
E a linha transversal ao quadro
conduz o olhar ao túnel,
e tudo é negrume,
um negrume audível,
em que há pedras que voam,
há a solidão do mundo,
há uma verdade
que é como a morte,
uma verdade que antecede o último suspiro.
A têmpera conduz a paisagem,
é leve
– tão leve que é insuportável,
com a vedação por trás,
e a erupção vulcânica
na cabeça da figura,
só,
desesperada.
De novo os barcos regressam a Oslofjord,
sobem-se a escadas que os fungos invadiram,
e volta-se à esquerda,
e, depois, à direita:
e a lonjura
é toda a expectativa do quadro.
Mais do que o desespero,
a lonjura ramifica-se em partes iguais
em todas as direcções,
povoa a luz e as sombras,
os barcos, ao longe,
o frio,
o gelo azul.
Dois passos na plataforma
não alteram o ponto de visão
– a cabeça é uma cabeça de gesso,
fria como o gelo azul,
insuportável
naquelas cores difíceis,
naquelas cores inclinadas para o mar,
íngremes,
rasgadas sobre o céu.
Este homem, é quem?
O meu pai, há tanto desaparecido,
que não tem memória de mim
e eu não tenho memória do seu nome?
E esta mulher, quem é?
A minha mãe,
que me embala nas escadas
e me dá o seio, com um cobertor vermelho
cobrindo-lhe o regaço?
Estou exausto e pinto,
é sobre um cartão que pinto,
e a têmpera é uma estrela amarela
sobre a plataforma,
e eu sou um menino,
um menino perdido na escuridão,
com o seu bibe encarnado
e os seus lápis de cor
a transpor a vedação,
enquanto as gaivotas uivam
sobre a minha cabeça
e os barcos regressam a Oslofjord.
(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, CMSintra, 2009)
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