O POETA DESPEDE-SE DA SÉ DO PORTO
São verticais as coisas de Deus
e estou a chorar sob o transepto
da catedral da cidade da Virgem.
De um lado a outro deste mundo,
onde a sombra se transfigura
em seda e tempestades luminosas,
aqui venho pela derradeira vez,
a confirmar razões que nem sequer supunha.
Esta é a cidade em que nasci e a rua ali em baixo,
sempre escura, foi a que minha mãe deixou,
sem que soubesse como eu a choraria
ao percorrer esta nave onde me vejo
cego de tudo, com o coração a arder
por não conseguir capturar outro destino
que esta sorte sem sorte de ter de partir.
As mãos estão vazias neste transe,
exactamente como as minhas nas suas estiveram
à espera que as vozes se erguessem
sobre este morro, estas lajes, estas escadas.
Pouco ou nada a cidade nos ouviu,
enquanto os meus olhos se perdiam
neste altar todo de prata e sedimentos
dos meus antepassados. Avulsas lágrimas
chorei nestes recantos, sempre abismado
desta abóbada e destas balaustradas,
onde só torres há para que fiquemos
porventura mais sós do que foi próximo
das miúdas ruínas que retemos. A pedra
cala agora essa amargura, mas um vulto
reza ainda sob a cúpula em que deixei
cair a minha infância, com as sombras
ancestrais que me cercaram, sabendo
que não se desvanece a neblina
que sitiou o templo esta manhã
e agora percorro a querer lembrar-me
de que matéria é feita esta cidade
onde cintilações cinzentas entretecem
o demorado olhar que ponho sobre as coisas
quando o rio me exulta e à Sé chegam
rumores de um bando de crianças
que brincam nos quintais, tal como eu
brinquei há muito tempo sob as árvores.
Um poeta raramente se despede
das coisas que mais ama, mas mesmo assim
devo cumprir-me neste lance
em que fica o coração retido num lugar
de memória e fulgores em que, menino,
sob o nártex deste mesmo espaço,
minha mãe comigo dividiu uma laranja
e quis que eu rezasse com ela alguns instantes.
Assim rezei, aos astros e aos rastros luminosos.
Um era uma fogueira, outro um espelho
a espalhar claridades no espaço,
sob os mil sulcos que ampliam o infinito
e as suas progressões inomináveis
na cruz latina, fechada por ogivas.
Assim me despeço deste sítio, a chorar,
convulsivamente. A esta nave
me entrego para sempre, a saber
que não voltarei aqui de novo para ver
como estes santos de pedra me omitem
a graça e a desgraça de aqui estarem,
sem mais nenhum destino que o da ausência.
Quem eu tive por meu, já aqui não está.
Não sei de minha mãe e nunca soube
onde andou o meu pai a assaltar países.
Quanto aos meus filhos, nem eles sabem
quanto lhes sinto a falta, ainda que tarde
a levantar a voz para chamá-los,
ou não me respondam eles da extensão
do insuportável silêncio que nos une.
Não sei se estas pedras ainda bastam
para poder cantar, quando me for.
O coração sagrado da cidade em que nasci
não me devolve o quanto me tiraram neste sítio
que se estende ao mar e ao lugar em que as pontes
bifurcam este tempo em encruzilhadas
lancinantes. Há fome na cidade.
Ninguém se pode alimentar
da gravilha e da nafta nocturna
que vem à minha cama soçobrar
quando em pensamento me faço aqui passar
e em que só pressinto um desusado fascínio suicida.
A catedral, eu sei, não lembrará
o menino que fui e que pediu
para aqui ficar mas teve que se ir
sem mais demora que a deste tempo
em que os crentes pedem, mas recebem pouco.
Por mim, também pedi. Também acreditei
que poderiam estes arcos suportar
toda a sede da minha ignorância
e o desrazoado em que me fortfiquei para perder.
Nada bastou, porém. Escrever versos
é uma liturgia bem diferente
da que aqui se pratica, concertada
por diferentes charamelas e tocheiros
que escassa luz reflectem. A Sé continuará
no seu fulgor de sempre, talvez uma criança
a ela venha ungir-se com o sumo da laranja
que minha mãe me deu, há desencontrados anos,
e seja a chave deste enigma
que me deixa estupefacto quando olho
Nossa Senhora de Vandoma a acenar-me
do outro lado que há na eternidade
e em que eu estarei, anónimo e vigente,
daqui a algum tempo, sem, no entanto,
poder perdoar nada. Não perdoo a miséria,
altas traves. Não perdoo o esbulho
aos meus contemporâneos, arcobotantes.
Não perdoo, barroca galilé e fundações
românicas, a indignidade que aqui em volta há
e o enxovalho de nenhum pão haver
para repartir. Não perdoo a insídia e a má-fé
que isto permitiu, claustros góticos.
Não perdoo, cidade, que fosse só exílio
o melhor que guardaste para mim,
tendo-te eu cantado como poucos.
Não perdoo que o teu sinal não seja o que,
antigo e denodado, os meus te entregaram,
invictos, e leais, e sempre nobres.
Inédito - © de Amadeu Baptista
É verdade, Amadeu, cantaste esta cidade como poucos.
ResponderEliminarAté breve, Poeta!
Vai Viver!
Assalta-me a profunda amargura com que cantas a tua bela cidade.
ResponderEliminarDa minha parte quero continuar a ler o teu canto, regado com amor, saboreado no sumo de uma laranja partilhada.
Faz da laranja partilhada o teu sossego, o que na tua cidade não encontrarás nem mesmo se estiver morto. Yayá.
ResponderEliminarEsplêndido! Seu poema pulsa...!
ResponderEliminarToca profundamente sua despedida!
Forte abraço!
Fiquei sem palavras, Poeta! Que magnífico poema!
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