quinta-feira, 16 de junho de 2011

William Blake


WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)

(para Nuno Dempster)                                  

Não há síntese,

mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem

com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.

Por isso, a minha vida é isto:

trabalhar com as mãos,
amalgamar na boca as cores da ferrugem
e descrer nos triângulos de ouro
da omnipotência:

Deus, a existir, é uma convergência
de patifarias,
com predicados de morte nos cabelos
e os olhos cegos à miséria
que em nome do homem reproduz.

Por isso, ilustro os meus cadernos
com sóis antigos,
adubos incomuns
– e ponho nos meus sonhos

os fantasmas,
a imagem de uma pulga,
com o seu perfil
ausente e circunspecto,
porque assim se faz a perenidade
e, até agora,
nenhuma linguagem foi criada
para tanta inocência.

A norte sobrevivo,
com a neve a queimar-me o coração
e os anjos sobre as árvores:

os anjos negros de que as visões
se iluminam
e de que o meu choro se expande
em cântico e oferenda
para que Urizen e Ahania
respirem,
ainda que ofegantes,
sobre a página.

Ilustro a profecia
e sou, na terra,
também eu profeta,
fazendo dos azuis e dos vermelhos
horas nocturnas,
sensíveis sagrações,
golpes de chumbo
na intensidade
com que entre nós e os mortos
o provir se estabelece,

e o que é divino recupera
do rosto numeroso da horda
do momento.

O mundo é isto:

Satã a observar Adão e Eva,
o círculo da luxúria,
as canções de inocência,
Bathsheba no banho,

e o rastro de sangue
do exílio
em que reconheço os meus contemporâneos
a subverter a agonia,
sempre sitiados pelo nojo
e a insânia.

O que mais amo é o meu temor
perante as lanças,
o doce anjo,
o tigre:

e as minhas lágrimas secam
nesse páramo,
onde, após o deserto,
só o deserto perfaz a casa,
a minha casa sob o firmamento.

De onde vim
só vi devoração

– tenho nos ombros os sinais dos ferros,
e os meus olhos cegaram pela insídia
com que outros olhos me viram
ao passar;

e ensurdeceu o meu ouvido,
e perdi o olfacto,
e, às minhas mãos,
chegou a febre
de Job,
a febre da ignomínia.

Tigre, meu tigre,
no bosque cintilante
a tua simetria
perdura além dos séculos,

enquanto os astros lançam os seus dardos
para que subsistas na floresta nocturna
e eu te reconheça como único aliado.

E assim volto às chamas do desígnio,
e canto,
e pinto:

porque sei bem que não tenho nome.

O mundo é isto:
cristal fundido e baba
de que os cavalos se afastam
para que a serena viagem tenha início.

E ri o ar,
e ri a floresta

– e ri a verde colina
e a sombra dos pássaros,

e a nossa estridência é como uma fábula
onde só há crianças,
e pão,
e corvos sobre as águas.

Não odeio ninguém.

Sobre a pobreza
juro
fidelidade à terra,
este lugar de sonhos ancorados
e hinos a exaltar
o pastor,
a vigília,

o leite e o mel.

E, pela minha morte,
conjugarei o silêncio profundo,
Sísifo no espelho
e o arco-íris:

topázio,
ocre,
azul fumo,
índigo,

branco de zinco,
verde absoluto,

vermelho
arenisco,

mínio,
cinábrio,
rosa violáceo

e negro,
negro como o infinito espaço.

Não há síntese:

mas só mundos paralelos
onde os animais rastejam,

que eu vi a pomba e o vi o sacrifício,
a pedra e o punhal –

e o poder do galope,
e os cavalos como cristais nas árvores.

O que mais amo é o meu temor
das lanças:

as anilinas fervem nessa febre,
penetram-me os ossos,
fundem-se ao meu corpo,
pulsam no meu crânio

e do leve fascínio
sei que o meu nome
é o nome de um foragido ou um proscrito,
que avança sempre em frente,
em linha recta,
em círculos,

até que, numa vitória rasa,
a terra ganha
e à morte outra morte se sucede.

Não odeio ninguém:
ponho nos meus sonhos os fantasmas,
a imagem de uma pulga,

– eu, que incerto e ágil,
sou como o tigre
que uma mão imortal
aproximou
do lugar dos segredos
e da vida.

E assim volto às chamas do desígnio,

e canto,
e pinto.


(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CMSintra, 2009)

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