WILLIAM BLAKE: NIGHT THOUGHTS (1797)
(para Nuno Dempster)
Não há síntese,
mas só mundos paralelos
onde a graça e a desgraça
se encontram
para delimitar o inferno
e o acrescentarem
com a essência e o erro,
a tontura e o desequilíbrio.
Por isso, a minha vida é isto:
trabalhar com as mãos,
amalgamar na boca as cores da ferrugem
e descrer nos triângulos de ouro
da omnipotência:
Deus, a existir, é uma convergência
de patifarias,
com predicados de morte nos cabelos
e os olhos cegos à miséria
que em nome do homem reproduz.
Por isso, ilustro os meus cadernos
com sóis antigos,
adubos incomuns
– e ponho nos meus sonhos
os fantasmas,
a imagem de uma pulga,
com o seu perfil
ausente e circunspecto,
porque assim se faz a perenidade
e, até agora,
nenhuma linguagem foi criada
para tanta inocência.
A norte sobrevivo,
com a neve a queimar-me o coração
e os anjos sobre as árvores:
os anjos negros de que as visões
se iluminam
e de que o meu choro se expande
em cântico e oferenda
para que Urizen e Ahania
respirem,
ainda que ofegantes,
sobre a página.
Ilustro a profecia
e sou, na terra,
também eu profeta,
fazendo dos azuis e dos vermelhos
horas nocturnas,
sensíveis sagrações,
golpes de chumbo
na intensidade
com que entre nós e os mortos
o provir se estabelece,
e o que é divino recupera
do rosto numeroso da horda
do momento.
O mundo é isto:
Satã a observar Adão e Eva,
o círculo da luxúria,
as canções de inocência,
Bathsheba no banho,
e o rastro de sangue
do exílio
em que reconheço os meus contemporâneos
a subverter a agonia,
sempre sitiados pelo nojo
e a insânia.
O que mais amo é o meu temor
perante as lanças,
o doce anjo,
o tigre:
e as minhas lágrimas secam
nesse páramo,
onde, após o deserto,
só o deserto perfaz a casa,
a minha casa sob o firmamento.
De onde vim
só vi devoração
– tenho nos ombros os sinais dos ferros,
e os meus olhos cegaram pela insídia
com que outros olhos me viram
ao passar;
e ensurdeceu o meu ouvido,
e perdi o olfacto,
e, às minhas mãos,
chegou a febre
de Job,
a febre da ignomínia.
Tigre, meu tigre,
no bosque cintilante
a tua simetria
perdura além dos séculos,
enquanto os astros lançam os seus dardos
para que subsistas na floresta nocturna
e eu te reconheça como único aliado.
E assim volto às chamas do desígnio,
e canto,
e pinto:
porque sei bem que não tenho nome.
O mundo é isto:
cristal fundido e baba
de que os cavalos se afastam
para que a serena viagem tenha início.
E ri o ar,
e ri a floresta
– e ri a verde colina
e a sombra dos pássaros,
e a nossa estridência é como uma fábula
onde só há crianças,
e pão,
e corvos sobre as águas.
Não odeio ninguém.
Sobre a pobreza
juro
fidelidade à terra,
este lugar de sonhos ancorados
e hinos a exaltar
o pastor,
a vigília,
o leite e o mel.
E, pela minha morte,
conjugarei o silêncio profundo,
Sísifo no espelho
e o arco-íris:
topázio,
ocre,
azul fumo,
índigo,
branco de zinco,
verde absoluto,
vermelho
arenisco,
mínio,
cinábrio,
rosa violáceo
e negro,
negro como o infinito espaço.
Não há síntese:
mas só mundos paralelos
onde os animais rastejam,
que eu vi a pomba e o vi o sacrifício,
a pedra e o punhal –
e o poder do galope,
e os cavalos como cristais nas árvores.
O que mais amo é o meu temor
das lanças:
as anilinas fervem nessa febre,
penetram-me os ossos,
fundem-se ao meu corpo,
pulsam no meu crânio
e do leve fascínio
sei que o meu nome
é o nome de um foragido ou um proscrito,
que avança sempre em frente,
em linha recta,
em círculos,
até que, numa vitória rasa,
a terra ganha
e à morte outra morte se sucede.
Não odeio ninguém:
ponho nos meus sonhos os fantasmas,
a imagem de uma pulga,
– eu, que incerto e ágil,
sou como o tigre
que uma mão imortal
aproximou
do lugar dos segredos
e da vida.
E assim volto às chamas do desígnio,
e canto,
e pinto.
(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CMSintra, 2009)
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