quarta-feira, 18 de maio de 2011

Doze Cantos do Mundo, 2009










MARK ROTHKO: NUMBER 207 - RED OVER DARK BLUE
ON DARK GREY (1961)


 
Não sei o que há entre Dvisnsk
e Nova Iorque,

e mesmo que soubesse
proporia que tudo fosse silenciado,

que nada se dissesse,

e só o avassalador silêncio
pudesse dizer quem fui e o que fiz.

As palavras enredam-nos em armadilhas
mortais
e nada há mais mortal
que a vida,

por isso,
as minhas telas
são o silêncio que são,

onde as cores se demoram
para que a exaltação do silêncio
permaneça e se guarde

e só quem as contemple reconheça
o que lá está:

a dor,
o sofrimento,
a vida em estado puro.

Se alguma coisa tenho para dizer,
direi, apenas, que há emoções
desconhecidas no que faço,

e que é pela claridade que confronto
o público
com as telas

que, com elas,
deve gritar e chorar,

porque foi exactamente aos gritos e a chorar
que as pintei,

rangendo os dentes
e insuflando-lhes vida.

Vejam:

alio este vermelho a este azul,

as cores conjugam-se,
mesmo repelindo-se,

e, olhando bem,
não é só o vermelho e o azul o que se vê,
aqui, em frente à tela,
mas tudo o que nos toca o coração,

e se encontra latente na memória

e, pelo confronto,
chega.

O azul, por exemplo:

sente-se que oscila,

sente-se que nos leva para trás,
sente-se que nos arrasta pela nuca

e nos coloca
perante obsessões
que nos envenenam.

E, levando-nos para trás,
os nossos olhos fecham-se,

e entramos num quarto muito escuro,
e, no escuro, reconhecemos
o azul do brilho de uma lâmina,

e os nossos dedos,
azuis,
tocam a lâmina,
e a lâmina,
azul néon e mate,
impele-nos a confrontar a morte,

até que não podemos mais
e, a correr, saímos.

E o vermelho

– é, tão-só, vermelho,

ou atrai-nos para um poço?

O poço é escarlate,

e escarlate sendo, o que se vê?

Uma mulher deitada numa cama,
com um roupão vermelho,

e as unhas pintadas de vermelho,

e a boca vermelha,

e a cabeça caída sobre uma almofada,
também vermelha,

de um vermelho vivo,
tão brilhante,

que sabemos
que há um crime oculto no vermelho
que nós observámos na infância.

Vejamos o conjunto:

o azul está por baixo e, por cima,
o vermelho primário a transformar-se
em lábios,
corais,
crepúsculos,

e um sortilégio avassalador
que nos leva a um monte com um túnel.

Atravessando o túnel
vemos as cidades,
e, por cima das cidades,
o demónio,

e o demónio blasfema,

e lembra-nos a indiferença
com que os nossos pais nos abandonaram,

e é medonha a noite,
e é medonha a sensação de termos sido
abandonados.

No fim, há só silêncio.

Mas o milagre já aconteceu,

já cada um de nós foi confrontado
com o que não queria ver
pela selvajaria da serenidade

e pode, depois disso,
voltar para casa.

De novo vem a nós
o silêncio:

estamos em casa
e as cores, de tão amenas,
são já frenéticas,

e os nossos dedos rasgam-nos
a carne,
e supliciamos o corpo,

e percebemos que há pouco sentido
na vida que levamos.

Tem cor a nossa vida?

E a resposta chega-nos,
certeira e inequívoca,
enquanto nos lembramos
dos gritos e do choro
que, em frente ao quadro,
produzimos,

e da força que há na nossa natureza,

e dos milagres possíveis
que em cada coisa há.

Coube-nos viver num tempo de assassinos,
mas é a claridade que almejamos,

não a que veio ao quadro convocar-nos,
mas a que, pelo poder da pintura,
se instala em nós,
a modular a noite
e a apaziguar-nos.

É essa claridade que procuro,
– e o silêncio.

O silêncio das cores e o seu apelo
irrevogável,

de que nada há a temer,
mesmo que atemorize.

A vida é isso mesmo:

o medo à nossa frente,
imóvel como a esfinge,

e nós sempre a enfrentá-lo,

transparentes,
aflitos,
condenados,

mas prontos para ver

as cores do infinito.


(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM de Sintra, 2009)

Prémio Literário de Sintra Olívia Guerra, 2008

2 comentários:

  1. Obrigada, Amadeu, meu querido, pela poesia que nos dás. Sem a tua poesia o mundo era mais pobre, mais feio.
    És Grande. E sabes que o és. E eu sou Grande também, porque te leio, porque tive o privilégio de te conhecer. Contigo, o mundo é Grande. A poesia é Grande.
    Obrigada.

    ResponderEliminar
  2. hoje, construindo um hábito, vesti umas reservadas luvas de couro de pata para vir aqui, toda certinha e certinha de mim... mas é tanto esse teu queimante quando amante, Amadeu... e me despi das luvas e pudores para gritar abjeta: METI A MÃO EM PELADOS CARINHOS NO CORPO DOS TEUS VERSOS SÓ PARA TER EM QUEIMADURAS UM NACO DOS TEUS FOGOS NAS PONTAS DOS MEUS DEDOS... podes perdoar essa minha de atrevimentos?...tadinha indo...cabisbaixa, lacrimosa, soprando ferimentos...

    Tua poesia bota-me toda louca fugidia dum meu convento de ossos que nem eu conhecia.
    Beijinhos.

    ResponderEliminar