terça-feira, 24 de maio de 2011

O Ano da Morte de José Saramago, 2010




(fragmento)

E é então que a saudade se expande como palavra portuguesa
e eu volto à infância, enquanto tu, Dempster das Irlandas que não há,
revives e oficias o K3 dessa Guiné repulsiva para que o fascismo te mandou,
como se houvesse uma nova crónica do descobrimento e conquista da Guiné a ampliar
a que o Zurara escreveu, e nada se cria ou se perde, e tudo se transforma,
como a antiga lei nos disse, e de versos se inça o exílio que jamais projectamos
e, sem mais, o acaso da vida, pelo seu ábaco infeliz, nos ordenou –
e sabemos que os poemas sujam tudo,
tal como os pombos, as pombas, os ratos, os pais que nos traíram,
e todos os que traíam as infâncias que, como as nossas,
foram vividas a golpes de marcas nos costados pela sovas iníquas
que nos deram

Falemos de exemplares vivos e pios de aves,
o centro da cidade é uma loja chinesa na ordem geral do mundo,
nós estamos a viver algures entre a rua Formosa e a rua da Paz
e o dia de hoje, claro como há muitos dias não havia, enche-se de sombras,
e eis que acabam de bater as doze e quarenta e cinco e morre, em Lanzarote,
José Saramago, tão pombo como nós na refrega das coisas que nos escapam
entre os dedos como se não fossem mais que jangadas de pedra onde nenhum
ente divino se senta à nossa mesa por um café – falemos
da inexprimível solidão dos poetas, esse luto

Vejo-me como um homem calado, vejo assim os poetas,
vemo-nos como homens calados que não podem estar calados,
ou que estão cegos e não podem estar cegos,
ou que não podem deixar de deambular na cidade,
porque há uma pedra a levantar do chão,
um povo a levantar,
uma infância a levantar

É, foi na infância que o descontrolo se arrostou,
aquele odor a sal e a vinagre palpita ainda no meu cérebro,
ligamo-nos assim à terra, a olhar o interior das mercearias,
dos pomares,
a surpreender a alegria que se faz pela interposição do silêncio
com as palavras vitais, o rego de sangue que se abriu
na via do caramanchão quando ficou determinado o lugar das alucinações
e se abriu a porta para um determinado ponto da cidade,
esse mesmo onde caímos pela primeira vez

O que lá está é nosso e não nos pertence nunca, o olhar
deslumbra-se por esses cavalos, essa estátua, esses pombos,
provera a Deus e seríamos meninos para sempre com essa brisa no rosto,
os barcos estão cheios de carvão, discorrem sobre eles as mulheres
que pelas tábuas passam e carregam à cabeça largos cestos de vime,
e é como se fossem podoas a escandir o ar, como se fossem
a nossa misericórdia irremissível


(in O Ano da Morte de José Saramago, Lisboa, & Etc, 2010)

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