sábado, 7 de maio de 2011

Negrume, 2006



Poema 12 do capítulo 'Negrume':


12.
é de rasoira e lâminas sem cabo
o meu ofício. atento à escuridão,
gravo impossíveis na quilha dos navios.
e solto, na floresta, o grito do poeta.

sobre a vida real nada me digo.
o que me interessa é a luz que há nas janelas,
as ruínas do tempo,
a tarimba da cela.

ao desabrigo volto como volta
o criminoso ao local do crime.
por uma mulher trabalho num jardim,
transpiro, ressumo sal, sujo-me todo.

inclino a cabeça para trás
e sinto a ingratidão a estar comigo.
às vezes embebedo-me e crispo os dedos,
o coração é uma raiz num almofariz.

do pouco que me lembro, lembro tudo.
alguns murmúrios que escutei na infância
estão tão próximos
que os oiço agora tal como os ouvi.

o que me basta não me basta nunca.
quanto perdi e disse que era meu
  e inexoravelmente se afastou de mim – ,
pertence-me para sempre como um desagravo.

amei uma mulher que não me amou,
eternamente a amo.
não é a falta de amor o que me estorva.
numa tábua de salgueiro recolho o sangue.

peço que entreguem o meu corpo
ao mar, quando morrer.
se foi pela pureza que me fiz feroz
os peixes tomarão a minha carne.

nesta rua afastada,
atento ao som tenso e áspero da eternidade,
comprometo-me a voltar,
como boa erva.


(in Negrume, Lisboa, & Etc, 2006)

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