quinta-feira, 5 de maio de 2011

Salmo, 2004



Salmo

(fragmento)



Esperas a última,
a decisiva palavra.

Levas o rosto
às mãos,
olhas o infinito
que te não responde,

esperas um momento mais,
o sangue bate-te nas têmporas,
esperas unido ao silêncio e à solidão,
coagido por um vento
que te procura desde sempre.

Quem és? ,
eis a pergunta que te bate nos dentes,
resvala nos teus lábios,

eis a pergunta
que rasga a tua língua
e te enche de sangue,

batendo,
batendo-te,

lâmina insolúvel
na ignorância ancestral
que tens das coisas urdidas pela dor,
a tua dúvida central perante a vida.

Uma sombra amplia
a dimensão do teu corpo,
uma lágrima abre um ponto luminoso
nos teus olhos,
quem és?,
que vestígios de cinzas preenchem
o precário poder
perante o mar e as sombras,
as aves
e a água?

Quem és?,
por que deserto vens agora à vida,
soltando o inútil cordão de soluços
sem arrependimento,
essa torrente de protestos sobre o que te condena?

Divides o manto inefável
com o que encontras caído na estrada,
distribuis a revelação da tua passagem
aos que prosseguem entre os sonhos destruídos,
mas, quem és?,
com que punhal impões a tua presença
no universo,
com que arma investes
contra o que ergue a pedra do teu rosto?

Há um segredo guardado no derradeiro
escombro de uma estrela,
recolhes da manhã os esquecidos resquícios
da tua humanidade,
mas que poderá deter a marcha vacilante
dos teus passos
enquanto esperas,
a última,
a decisiva palavra?

Estás de pé,
a palavra demora sobre a pedra,
a esse vento pertences,

a dor oprime,
selvática,

congrega

o teu rosto à transparência,

calcina-te o olhar,
os dedos sobre a fria superfície do silêncio.

Demoras,
e tudo se demora para sempre,

por esse rumo inesperado
a luz arrebata e espera

a nudez de todas as coisas,
o insuspeitável fascínio dos teus olhos,
a imensidão do abismo.

(in Salmo, Porto, ASA, 2004)

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