Salmo
(fragmento)
Esperas a última,
a decisiva palavra.
Levas o rosto
às mãos,
olhas o infinito
que te não responde,
esperas um momento mais,
o sangue bate-te nas têmporas,
esperas unido ao silêncio e à solidão,
coagido por um vento
que te procura desde sempre.
Quem és? ,
eis a pergunta que te bate nos dentes,
resvala nos teus lábios,
eis a pergunta
que rasga a tua língua
e te enche de sangue,
batendo,
batendo-te,
lâmina insolúvel
na ignorância ancestral
que tens das coisas urdidas pela dor,
a tua dúvida central perante a vida.
Uma sombra amplia
a dimensão do teu corpo,
uma lágrima abre um ponto luminoso
nos teus olhos,
quem és?,
que vestígios de cinzas preenchem
o precário poder
perante o mar e as sombras,
as aves
e a água?
Quem és?,
por que deserto vens agora à vida,
soltando o inútil cordão de soluços
sem arrependimento,
essa torrente de protestos sobre o que te condena?
Divides o manto inefável
com o que encontras caído na estrada,
distribuis a revelação da tua passagem
aos que prosseguem entre os sonhos destruídos,
mas, quem és?,
com que punhal impões a tua presença
no universo,
com que arma investes
contra o que ergue a pedra do teu rosto?
Há um segredo guardado no derradeiro
escombro de uma estrela,
recolhes da manhã os esquecidos resquícios
da tua humanidade,
mas que poderá deter a marcha vacilante
dos teus passos
enquanto esperas,
a última,
a decisiva palavra?
Estás de pé,
a palavra demora sobre a pedra,
a esse vento pertences,
a dor oprime,
selvática,
congrega
o teu rosto à transparência,
calcina-te o olhar,
os dedos sobre a fria superfície do silêncio.
Demoras,
e tudo se demora para sempre,
por esse rumo inesperado
a luz arrebata e espera
a nudez de todas as coisas,
o insuspeitável fascínio dos teus olhos,
a imensidão do abismo.
(in Salmo, Porto, ASA, 2004)
Sem comentários:
Enviar um comentário