fragmento inicial de:
3. QUADROS PARA UMA EXPOSIÇÃO
não digo que o meu coração pulsa, digo
que pulso com o meu coração.
neste sentido, o que quer que faça,
surge de mim com a mesma acutilância
do que, comigo persistindo, expressa
a inquietação de quem, não tendo asas,
ousa voar, pintando. por um lado, vejo.
por outro lado, pinto. e tudo a que aspiro
é esta perturbação imperturbável
que vem da luz e o mundo transfigura,
sem que ignore, em qualquer momento,
que também surjo do mundo e nessa luz
evoluo, a questionar o mistério e o sortilégio
em que aqui chego, como um sintoma
de tudo o que existe no universo
e é, comigo, a expressão da ressonância
que viaja pelos tempos para todo o sempre
e pela variedade infinita se define. assim,
conquisto pela cor e pela luz
a doçura possível que enquadra
a tensão em que tudo coexiste
e como uma narração procede do amor
e em drama e invenção se manifesta
ocultamente, para que se entenda
a explicação da urgência, a relação suprema,
o contraponto entre a arte e a natureza,
a turbulência, a nitidez, o ofício.
falo, antes de mais, dessa energia
que as formas geométricas corporizam
e não são mais que figuras de nós mesmos
em permanente mudança, a fluir
no que se adivinha e pressente
onde as pulsões se juntam e concorrem
para melhor discernir a solidão, o medo,
a incontornável cronologia das várias circunstâncias
onde nos perdemos ou nos encontramos
como ascensão e queda, ou apurada
enunciação da ascese e do desejo.
pela memória assumo os pressupostos
do que o fio do novelo guarda em si
para que se não esqueça o caminho percorrido
e as suas qualidades, tantas vezes
cercado por negrume e asfixia, tantas vezes
tão próximo da ruína e do extermínio,
tantas vezes acossado pelo que acumula
vazio nos monturos, cadafalcos, forcas.
pela memória assumo a diligência
de averiguar o que é estrela fixa
e no ponto de fusão ao cosmos acrescenta
um lugar de partida e de chegada
a esta passagem para outra luz
onde a luz é um ímpeto e uma espera
implícita para quem sonha e reproduz
no voo um voo esplendoroso
e no desterro uma hipótese, ainda.
pela memória assumo quanto vi
e instaurou nos meus olhos a avidez
e o deslumbramento, pelo auge
das coisas e o seu abismo, pela marca
irredutível que as forças em presença
propagam sobre nós, ampliando
o carácter da obra, a sua estripe e alcance,
a sua dívida à dúvida estabelecida.
na oficina, milímetro a milímetro,
outro combate enfrento, como se
ao material da memória viesse acrescentar-se
uma presença física carregada
do que é em mim a génese de um destino
e o seu entendimento, uma estranheza
que só em algumas coisas reconheço,
seja um caderno branco ou um jogo de anilinas,
um cavalete ou um labirinto,
seja um livro por ler ou o escuro vão de escada
onde vou amontoando frascos, pincéis,
tubos de tintas, figuras mitológicas,
cubos, triângulos, panos coloridos.
(in O Som do Vermelho Tríptico Poético Sobre Pintura de Rogério Ribeiro, Porto,
Campo das Letras, 2003)
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