NOTAÇÕES PARA UM CALENDÁRIO PERPÉTUO
o que abala o vapor que passa, a sulcar as águas?
aquele que vai sonhando com a escuridão, como li em pavese (sognando il buio)?
outra dor mortal, que se fixou entre a décima e a décima-primeira vértebra?
alguma coisa que se perdeu nos confins da infância,
ou nos confins da infância dos nossos filhos?
este rumor que oscila no forro da casa e não sabemos
de onde veio, quem é e para onde vai?
a cor que nunca saberemos definir muito bem, a cor
que domina, entre o esmeralda e o negro asa-de-corvo?
o fim do mundo, sempre tão próximo e temido, ó contemporâneos?
o juízo final?
a certeza de não haver qualquer certeza, de djerba a padron?
o óbito que o médico há anos assinou no hospital de santa maria, de um homem
que jazia a meus pés quando se pensou que a minha nevrite era um ataque cardíaco?
a sábia mulher das castanhas, tão magra, que um dia me ofereceu num cartucho
a recordação do outono de 89 para toda a vida?
a fotografia da casa de espinho, com o cemitério em frente, que ángeles afirmou
ter visitado certa noite de luar?
a brigada da polícia que a mulher chamou certa vez porque num acesso de cólera
o homem partiu a sala toda?
outra dor mental, entre o hemisfério direito e o hemisfério esquerdo?
o flagelo dos mais pobres?
a morte da avó, a instalar em mim, definitivamente,
a vacilação, o medo, o fascínio?
o segredo inviolável da carta lacrada (lacre azul) poisada na base do vaso (vaso vermelho) de avenca?
o pássaro imóvel, que canta, circunstancialmente?
o sorriso de cândida, quando me pergunta se quero dançar?
certas rochas magmáticas, que a aliança com o vento solidifica?
o som do corne inglês, a ressonância do cravo, o sortilégio da anta?
a vigília do estore, que ninguém quer ver fechado?
a esconsa janela da taberna, através da qual se observa a claridade embriagada?
todas as sombras de santo stefano belbo?
a fita de cetim que com estrondo esvoaça na rua, quando não passa ninguém?
o ciclista que vai em último lugar na classificação geral mas irá envergar a camisola amarela antes do final da etapa?
o feitiço que o anúncio da rádio afirma ser irreversível ?
a feiticeira de que me falou alfredo na corunha (se tu falas galaico-português
a minha pátria é a língua galaico-portuguesa, embora portuguesmente me sinta irlandês,
de dublin ou de belfast) e que por ser galega dá pelo nome de meiga?
a informação de capital importância a que ninguém prestou a mínima atenção
e não é, afinal, de capital importância?
o papel de parede do primeiro andar do número setenta e oito
da rua do monte de judeus no dia 6 de maio de mil novecentos e cinquenta e três
como apontamento autobiográfico?
teotihuacan, silves ou florença, em finais da década de setenta?
a memória fotográfica de verónica?
determinadas somas e outras subtracções que se fizeram num guardanapo de papel
como quem escreve um poema (uma arte poética?)?
o último bilhete de eléctrico do ruy belo guardado entre um livro de carlos de oliveira?
a mulher da noite de madrid?
a outra mulher de madrid que observei a comer batatas fritas
perto do museu do prado (goya)?
conímbriga, que sempre visitei quando ia com os meninos a riachos,
chamando-lhes o olhar para determinadas ossadas que lá estão e tenho a certeza
de que são as minhas?
a noite que acaba de cair no marão e abraça a montanha com a hesitação
de um primeiro nevão?
o tâmega, de que amadeo pintou certo recôndito lugar?
o guarda florestal que acabou agora de acender o cachimbo para poder ter
um incêndio – embora pequeno – para vigiar?
o ar circunspecto com que ele puxa a primeira fumaça e acompanha no livro
o mais obscuro herói de emílio salgari?
o quase imperceptível assobio da brisa nas conchas espalhadas no areal da tarde?
a sereníssima república de veneza, que para surpresa minha nunca visitei
(murano fica perto?)?
esta dupla interrogação supracitada?
o flagelo dos mais pobres?
a crónica falta de cigarros (três da manhã!), obviamente a desoras?
os alazões que me cavalgaram a ansiedade, a pretexto de uma ideia que não quero
agora explorar, e são vermelhos (gauguin) e vão à desfilada pela praia?
a palmeira de tânger, que não tendo visto nunca estou a ver aqui?
dois triângulos escalenos desenhados a giz por um dos heterónimos de pessoa
(ricardo reis, no ano da morte?) no cais das colunas
e que alguma chuva e muito anonimato deixou esquecidos sob a luz das gaivotas?
o oráculo de delfos, que estabeleceu o choro de uma mulher muçulmana
em alcácer do sal,
em dois mil e doze da nossa era (ano da minha morte?)?
esta segunda dupla interrogação supracitada?
o pingo de cera que derreteu no braço beneficiando a imagem impressa sob a pele?
o volkswagen branco matrícula hg-63-24 que estacionou numa página de pedro tamen
e a intertextualidade mandou parar aqui?
o omisso incidente entre a rapariga cigana, núria, e zé manel, carpinteiro-de-limpos,
que a ponta de uma faca sujou para a eternidade?
um dos barcos que atravessa o rio e transporta um vulto para a outra margem
(um lacrau?) ( uma predestinação?)?
esta terceira dupla interrogação supracitada?
a eternidade ela-mesma, diáfana e irreal?
o poço onde ela cai?
o rosto perplexo que lá em baixo brilha?
o coração cansado que nesse brilho mora?
o fluxo do vapor que passa e abala as águas,
encerrando assim o círculo, escarlate?
(in revista Inútil n.º 2, Lisboa, 2010)
Parabéns!
ResponderEliminarBeijos.
BEIJINHOS E PARABÉNS....UM DIA FELIZ...UMA VIDA FELIZ...MUITA POESIA E MUITA ALEGRIA!!!
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