terça-feira, 10 de maio de 2011

Balada da Neve e Outros Poemas, 2007



'Balada da Neve e Outros Poemas' é um pequeno volume antológico que, pela mão amiga de António Cabrita, foi publicado na Escola Portuguesa de Moçambique, em Maputo. Apresenta-se o fragmento inicial do poema 'Balada da Neve', cuja primeira publicação ocorreu no n.º 11 da revista Hífen (Porto, Maio de 1998):


BALADA DA NEVE

(fragmento inicial) 


Três quartas partes da terra pertencem ao meu pai e eu sou pequeno
    perante a sua grandeza.

Ele é hábil com a faca e a sua voz ecoa pelo mundo quando a manhã é
    ainda uma ténue neblina
e os utensílios funestos percorrem a casa, obscuramente.

Ele carrega essa máquina, acorda-me a meio da noite para me mostrar
    o gume de uma lâmina.

No meu sonho testemunho esse brilho e fico cego pela luz repentina
     por que hei‑de perder a alma.

Ele há-de chegar animado, o álcool operará maravilhas,
a marca da infância reconduzirá a inocência a esse calafrio de me ver
    submerso no inebriamento.

O pai enxameia a casa de palavras, os gritos ouvem-se nos confins
    da cidade,
sobrepõem-se aos rogos da mulher que espera em frente ao oratório
    onde Santa Filomena pontifica.

O pai exagera a força que tem, há-de zurzir na mesa um murro brutal,
e todos ficamos apaziguados pelo consequente silêncio, as lágrimas.

O pai não sabe ler. Vê, adivinha.

Quando passa na sombra dos sentidos clama o número da sorte
que risca com fogo vermelho, a frio, na pedra fundadora.

O pai arrebata, extasia.

Quando acende o cigarro e atira o fumo para o rosto dos que passam
o concílio estremece, ficamos com as mãos submersas em suor.

O pai é uma pessoa exclamativa, rebarbativa,
deixou-se fotografar ao lado da trapezista do circo internacional,
enquanto sorria, intensificando a frivolidade da noite.

O pai usa uma estranha máquina de barbear,
embrulha o rosto num creme viscoso, pastoso, translúcido,
e sangra abundantemente para uma toalha lavada, acintosamente lavada
    pela mãe.

Quando o pai acorda procuro refúgio nos mais inesperados lugares,
certa vez procurei refúgio no frigorífico e as minhas lágrimas congelaram,
ainda hoje irrompo em pranto em pequenos flocos de neve
que me conduzem a um certo abeto que nunca conheci, mas sei
    que existe.

O pai esteve na Suíça, trabalhou num restaurante requintado,
entre o faisão e os pudins variados está um homem velho para tanta
    impaciência.

Ele sabia que os aviões também têm música,
uma velha senhora, Monsieur, acreditava nessa estupefacção,
fruía entre o ski e o cosmopolitismo extravagantes pontualidades, receios,
    recorrências.

A mãe cansou-se, o desgosto havia de a matar bem mais que o inefável
    cancro
que grassava nas suas entranhas, mãe, sempre fiel, anos a fio de credulidade,
e a abominação a culminar uma vida de sacrifícios, rogos, ralhos, lágrimas.

O pai não esteve presente na cerimónia fúnebre,
mas alguns gestos trágicos marcaram o evento,
as minhas lágrimas congeladas atapetaram as veredas sombrias
    do cemitério,
a irmã esteve exuberante no vestido negro, justo, que realçava as formas
    e intimidava o vazio.

Uma crueldade após outra crueldade, a que se veio juntar a voz langorosa
de um cantor de tangos argentinos que ao longe gemia, atingia em cheio
    a câmara ardente.

O pai sabe que os aviões também têm música, não há fórmula freudiana
    que tanto o explique como essa noite, em que chegou de surpresa.

Tinha dormido ao relento e vagueou pela cidade,
debaixo do braço trazia o gato amarelo que miava freneticamente,
ao ritmo das carícias que ia recebendo.

Entreolhámo-nos, soubemos imediatamente que a ternura não era
    senão o pavor
de nos encontrarmos ali, completamente abandonados à pouca sorte
    do gato.

Ele encheu a panela com água e aguardou que fervesse, com a sua habitual
    impaciência de pai.

Tomou o gato,  benzeu-o, elevou-o acima da cabeça,
acariciou-o uma última vez e, lentamente, suavemente, submergiu-o
    no líquido fumegante.

O pai é um herói amantíssimo.

A partir dessa altura foi um ser desterrado na sua própria casa,
avaliava a erosão da terra, a malignidade da doença, a queda sem remorso,
    a pedra na espírito.
Projectara-se para além de qualquer convicção.

Aparece, desaparece.



(in Balada da Neve e Outros Poemas, Maputo, Edição da Escola Portuguesa de Moçambique, Maputo, 2007)

1 comentário:

  1. :) Curiosíssimo, este poema! Consegui lê-lo apesar da alusão ao sacrifício do gato amarelo e isso significa que me despertou o interesse... normalmente abandono sem mais delongas qualquer texto que apenas evoque maus tratos aos animais...
    Abraço!

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