quarta-feira, 25 de maio de 2011

Van Gogh



VAN GOGH: CAMPO DE TRIGO COM CORVOS (1890)

(para Joaquim Cardoso Dias)

É cedo em Auvers-sur-Oise,
mas os malfeitores permanecem vigilantes.

Desde que me lembro a minha vida
é uma fuga

– fujo dos malfeitores

e, por isso, a minha cabeça não aguenta,
a minha cabeça treme,

e estou só,
e atravesso a terra de ninguém
como se fosse perseguido pelo demónio
e o demónio se aliasse aos anjos,

e tudo fosse, na terra de ninguém,
essa conjura.

É cedo em Auvers-sur-Oise,

e noto as cores
da perseguição,

verdes, azuis e cinzentos
convocam-me os sentidos,

mas estou alerta,

alerta como só um louco pode estar,
ou um profeta.

Theo,
tal como as nossas brigas,
também o sangue que me corre nas veias é eléctrico,

e é preciso que eu parta,

é preciso que eu parta,
definitivamente.

As paixões enervam-me,
destroem-me.

E já não sei como dormir,
como cuidar que a navalha
esteja num lugar em que a não veja,

porque a navalha, Theo,

fascina-me,

e, às vezes, odeio esta maldita pintura

que fez soçobrar o meu amor
e a minha vontade.

Os malfeitores permanecem vigilantes,

e eu só quero o sul,
só quero, cada vez mais, o sul,

e é com o sul que sonho
cada noite,

a navalha,
o sul,
o quadro inacabado
que aguarda
a indecisão da minha espátula.

Ainda não sei, Theo,
porque nasci

– um homem vem ao mundo
para trabalhar nas minas
ou arrotear os campos,

não vem para que se entregue ao suplício
e nele ponha a sua devoção
e a miséria.

Fosse eu um homem diferente, Theo,

o homem que julguei capaz de ser,

e talvez no hospital me entendessem
e deixassem de me olhar
como o vagabundo que sou,

com a roupa manchada de tintas
e este rosto de quem vive o tormento
de passar sem indiferença
pelos seus semelhantes.

Preciso, Theo,
do consolo das tuas palavras,
e de pincéis comuns,

e de alguém que me visite na prisão,
se eu for preso
por ter perdido a cabeça,
(treme-me, a cabeça)
e me ter insurgido contra a turbulência
com que me perseguem.

Ontem fui à taverna, Theo,

e as cores deslumbrantes com que vi aquilo
pareceram-me ser de uma bondade infinita

– trabalhei toda a noite,
e é inimaginável como o trabalho me rende
quando esta febre chega

e as cores,
todas elas,
zunem nos meus ouvidos,
se expandem no meu crânio,

e descem pelo meu braço:

há um laranja saturado que só eu sei
que existe,

a luz envolve-o,
as sombras querem conspurcá-lo,

mas eu resisto, Theo,

trabalho incessantemente

e rezo, baixinho,
para que Jesus me ouça.

Em presença deste laranja,
meu irmão,
fico em pleno uso das minhas faculdades,
(sim, a cabeça, a cabeça treme-me por dentro)
e sorrio dos que me chamam louco,
e aprovo-lhes a decisão de me manterem afastado
dos favores do álcool:

fico à porta da taverna
e o espírito eleva-se,
e fico ali,
sozinho,
a tentar pescar a terra.

Não, não me empanturro de vinho,
de grão-de-bico e lentilhas,

farto-me, isso sim, desta cor,

que é a cor da transfiguração
e do equilíbrio,

porque sou imundo e intocável,
por mais que os malfeitores me persigam
e eu seja desequilibrado
(treme-me, a cabeça).

Quero tocar com as mãos
coisas que nunca vi,

sem receio,
atravesso os campos enrubescidos
pelo dilúculo matinal
e ouço vozes,
ao longe,

ouço vozes desconhecidas
que me chamam

e me fazem ver o incriado,
a miragem,
a alucinação.

Não temo:

tingido de carmim,
o horizonte espera-me,

e os malfeitores perseguem-me,

e sou como Isaac
a morrer às mãos do anjo mensageiro

e corre-me pelas veias
um sentido de grande utilidade:

pinto e pinto,
e a luz absolve-me do mal
e da maldade.

Theo,

há momentos em que a terra se cobre de papoilas
e eu possuo todas as riquezas da terra,

e sou um pobre pintor
a exultar pela magnificência,

por este ocre queimado, da cor
dos peixes da terra,

por este laranja-de-cádmio
que me reconforta,

por este vermelho,
vivo e condescendente.

Um dia há-de chegar a revolta
dos desprotegidos,

e os malfeitores saberão
o que vale efectivamente perseguir
quando a tristeza perdura

e só um tiro de pistola
vem resolver a contenda
indisputável, Theo.

Por isso, vou para sul

e há-de ser a sul
que me encontrarei com Deus.


(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM de Sintra, 2009)

3 comentários:

  1. :) Estranhamente, ele não se deixava atormentar tanto pelo Mistral, quanto pela inenarrável luz do sol.
    Gostei muitíssimo!
    Um abraço!

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