Foto: © de FIlipe Bonito
Miguel-Manso, poeta convidado
3 POEMAS DO LIVRO
ENSINAR O CAMINHO AO DIABO
os arredores com o vento
a meter-se entre os lotes, a maltratar
marquises e arbustos
as pessoas com quem falámos – ainda
o Sol mandava e escorria
por paredes de prédio, pelo toldo do café –
ficaram ali até a bola de fogo desaparecer
de todo atrás da serra; o Palácio
da Pena recortou a extinção do incêndio
e ao que depois deflagrou
chamámos noite e trazia glaciais punhaladas
que as camisolas de Agosto não
puderam temperar
vento, alturas, um certo silêncio
aziago, o televisor desligado para futebóis
ou para as galas com que o centro e o poder
enganam, entretendo, as cercanias
encurtámos nossos versos, não é lugar para
canções e a poesia – permita-me o retoque, Natália – é
para nos comermos
(ó suburbanos da dívida)
e comemos
(in Ensinar o Caminho ao Diabo, 2012)
PIAZZA SAN MARCO – ACQUA ALTA
às Musas não interessam
drenagens, deixam alagar livremente
com o que sobrevém: a água do instante
subjectivo
quando o poeta era uma fera luminosa
e Veneza, sobre a laguna, a porta para o Levante
com seu tráfego de peregrinos imateriais – que também traziam
as laranjas douradas, a seda, a musselina
porcelanas, aço, pimenta
incenso e alívios
a cidade detinha um colégio de sábios
que sabia, em dialecto próprio, ser a magia
este palácio mergulhado nos silêncios
mais submersos
e que apenas a ciência da leitura paulatina
poderá ser o escafandro glotal e sinal que soltará
da grosseria eloquente
o espanto oculto do poema
(in Ensinar o Caminho ao Diabo, 2012)
CONTAR OS CORVOS EM VENICE BEACH
não era só a tristeza de estar só, era
há tanto tempo andar perdida, escangalhada
no impenetrável regalório de Los Angeles
hóspede amontoada na pior camarata
disse-me que o desespero se arraigou, manchava
pareceu-lhe, o futuro com nebulosas e quase esfumava
da memória o luso cravo, a sardinha, o superior
areal da Caparica
nesse outro Sol, tão luzente que se apagou, ia
de mochila pouco a pouco, odiando as genéricas feições
somente na biblioteca se sentava, provendo
rabiscando um email a ninguém
e aqueles corvos por todo o lado
agoirentos, mal-entendidos na arte de agradar
esgrimiam ultrajes nocivos, injúrias funestas
hoje, a salvo, num banquinho sujo de jardim
alfacinha que atravessa o Inverno, recompõe para mim
a insípida descrição dessa aventura, pondo a tónica nos corvos
da Windward Ave, dos quais garante estar
em definitivo liberta, embora eu pressinta (mas não
comente) a causa da contristada veste, a correspondente
tingidura dos cabelos
até o olhar tem agora
um quê de padecimento corvídeo, como quem forjou
uma benigna aflição para a vida
(in Ensinar o Caminho ao Diabo, 2012)
Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista
Poemas© de Miguel-Manso
Miguel-Manso (1979) nasceu em Santarém e publicou cinco livros de poemas desde 2008: CONTRA A MANHÃ BURRA (2008) 1ª edição do autor, 2ª e 3ª edição Mariposa Azual; QUANDO ESCREVE DESCALÇA-SE (2008) 1ª, 2ª e 3ª edição Trama Livraria; SANTO SUBITO (2010) 1ª e 2ª edição do autor; ENSINAR O CAMINHO AO DIABO (2012), 1ª edição do autor; UM LUGAR A MENOS (2012) 1ª edição do autor. Colaborou em teatro com a companhia Cão Solteiro. Tem participado em residências artísticas e de criação literária. Participa em leituras públicas de poesia, onde se destacam as Quintas de Leitura no Teatro do Campo Alegre, Porto.
Não sendo diabo, nem acreditando nele, agradeço ter-me apresentado o Miguel Manso, que não conhecia e cujos poemas saboreei com todo o prazer.
ResponderEliminarApesar desta minha absurda fidelade ao decassílabo heróico, tenho a maior das admirações pela boa poesia contemporânea.