quarta-feira, 30 de maio de 2012

Miguel-Manso


Foto: © de FIlipe Bonito


Miguel-Manso, poeta convidado



3 POEMAS DO LIVRO
ENSINAR O CAMINHO AO DIABO




SÃO MARCOS PELA TARDINHA 


os arredores com o vento 
a meter-se entre os lotes, a maltratar 
marquises e arbustos

as pessoas com quem falámos – ainda 
o Sol mandava e escorria
por paredes de prédio, pelo toldo do café –
ficaram ali até a bola de fogo desaparecer 
de todo atrás da serra; o Palácio 

da Pena recortou a extinção do incêndio 
e ao que depois deflagrou 
chamámos noite e trazia glaciais punhaladas
que as camisolas de Agosto não 
puderam temperar

vento, alturas, um certo silêncio
aziago, o televisor desligado para futebóis
ou para as galas com que o centro e o poder 
enganam, entretendo, as cercanias

encurtámos nossos versos, não é lugar para 
canções e a poesia – permita-me o retoque, Natália – é 
para nos comermos

(ó suburbanos da dívida) 

e comemos

(in Ensinar o Caminho ao Diabo, 2012)





PIAZZA SAN MARCO – ACQUA ALTA


às Musas não interessam 
drenagens, deixam alagar livremente 
com o que sobrevém: a água do instante 
subjectivo

quando o poeta era uma fera luminosa
e Veneza, sobre a laguna, a porta para o Levante
com seu tráfego de peregrinos imateriais – que também traziam 
as laranjas douradas, a seda, a musselina
porcelanas, aço, pimenta
incenso e alívios

a cidade detinha um colégio de sábios
que sabia, em dialecto próprio, ser a magia 
este palácio mergulhado nos silêncios
mais submersos

e que apenas a ciência da leitura paulatina
poderá ser o escafandro glotal e sinal que soltará
da grosseria eloquente 

o espanto oculto do poema


(in Ensinar o Caminho ao Diabo, 2012)




CONTAR OS CORVOS EM VENICE BEACH


não era só a tristeza de estar só, era 
há tanto tempo andar perdida, escangalhada 
no impenetrável regalório de Los Angeles

hóspede amontoada na pior camarata 
disse-me que o desespero se arraigou, manchava
pareceu-lhe, o futuro com nebulosas e quase esfumava
da memória o luso cravo, a sardinha, o superior 
areal da Caparica

nesse outro Sol, tão luzente que se apagou, ia 
de mochila pouco a pouco, odiando as genéricas feições
somente na biblioteca se sentava, provendo 
rabiscando um email a ninguém

e aqueles corvos por todo o lado  
agoirentos, mal-entendidos na arte de agradar
esgrimiam ultrajes nocivos, injúrias funestas

hoje, a salvo, num banquinho sujo de jardim 
alfacinha que atravessa o Inverno, recompõe para mim 
a insípida descrição dessa aventura, pondo a tónica nos corvos 
da Windward Ave, dos quais garante estar 

em definitivo liberta, embora eu pressinta (mas não 
comente) a causa da contristada veste, a correspondente 
tingidura dos cabelos

até o olhar tem agora
um quê de padecimento corvídeo, como quem forjou 
uma benigna aflição para a vida


(in Ensinar o Caminho ao Diabo, 2012)



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas© de Miguel-Manso
Miguel-Manso (1979) nasceu em Santarém e publicou cinco livros de poemas desde 2008: CONTRA A MANHÃ BURRA (2008) 1ª edição do autor, 2ª e 3ª edição Mariposa Azual; QUANDO ESCREVE DESCALÇA-SE (2008) 1ª, 2ª e 3ª edição Trama Livraria; SANTO SUBITO (2010) 1ª e 2ª edição do autor; ENSINAR O CAMINHO AO DIABO (2012), 1ª edição do autor; UM LUGAR A MENOS (2012) 1ª edição do autor. Colaborou em teatro com a companhia Cão Solteiro. Tem participado em residências artísticas e de criação literária. Participa em leituras públicas de poesia, onde se destacam as Quintas de Leitura no Teatro do Campo Alegre, Porto.

1 comentário:

  1. Não sendo diabo, nem acreditando nele, agradeço ter-me apresentado o Miguel Manso, que não conhecia e cujos poemas saboreei com todo o prazer.
    Apesar desta minha absurda fidelade ao decassílabo heróico, tenho a maior das admirações pela boa poesia contemporânea.

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