quarta-feira, 2 de maio de 2012

Fernando de Castro Branco


Fernando de Castro Branco, poeta convidado

4 POEMAS


1 - A Caminho de Avoriaz

A caminho de Avoriaz, quase nos quarenta
em anos que não em velocidade,
sobes no terceiro pelotão, espécie
de maltrapilhos fragmentados
serra acima. A quinze minutos

de Alberto, e do jaune no maillot
onde todo o sol se esconde,
balanças o corpo gasto para um
e outro lado, sobre uma e outra
perna, como um barco à deriva
que faz que anda mas não anda.

- Pára, homem, pára, como é possível
que não me ouças, Lance. Manda foder
o pelotão e de caminho a bicicleta.

Olhos perdidos não sei se no pico da montanha
se em Deus, alheio aos gritos esparsos
que resistem como tu: Armstrong, Armstrong.
A boca espuma, que um homem não desce
do Olimpo para uma última escalada
por dá cá aquela palha. Ninguém
ressuscita assim da morte, Lance,
e nenhumas cinzas são boas para se renascer.

Ou a vitória talvez seja outra, invisível,
surda aos gritos de quem se desespera
pelo risco branco no topo da montanha
e a montanha a subir talvez não seja esta

que se inclina na rota de Morzine
e ameaça parar no céu. E seja outra,
que não subiste nos outros sete Tours
e sobes agora por ti dentro a descer


(in A Caminho de Avoriaz, Cosmorama edições, 2011)




2 - Narrador  

Punta Umbria, Abril de 2010

Um homem conta a estranha história
de um livro a haver. Traz o sorriso
de quem deixou os mortos em sossego
e os cães à solta nos matagais.
Teria arquitectado uma enorme fábrica
de reciclagem de peixes e passados,
a fazer fé nesse mar de palavras,
e nessas redes, onde guardou o que pode
em frente ao ponta de lança
do Bétis contra o seu Sevilha.

Quer aprisionar a noite e o vento,
para isso conta com um olhar azul
de narrador celeste que, segundo o suspeito
deste poema, que não é o do costume,
curava ou feria conforme o caso
e o crime. Poetas
sorriam como se o homem fosse
um velho soneto de rimas pobres.
Que não, o seu negócio era a prosa,
e veio ao mundo, estava certo, para
desembocar nesse malfadado livro.

Desdobrou um mapa, mundo aberto
ao sol do sul, escreveria
um romance só com a imaginação
do que ao corpo aconteceu. Ele
nunca mais saberá deste leitor, o mundo
é vasto e raramente concede uma
segunda oportunidade. Deixo aqui
o que resta do seu sonho, do seu livro
reduzido a pouco, a quase nada.


(in A Caminho de Avoriaz, Cosmorama edições, 2011)






3 - Desvios 

Os incêndios desta vez passam-me à tangente,
estou fora do lugar e isso me salva para já
de arqueologia mais funda.

Como sempre, neste dias tresmalhados,
o deserto desceu à cidade
e eu trago comigo areia, miragens,
para condizer com esta atmosfera.

Acuso o tempo de muita coisa: do peso
deste fardo a partir-me os rins, deste
apocalipse suave que me inunda os olhos
e ameaça nada deixar em pé.
Só o rio permanece como novo, intacto,
por transplante de vísceras, certamente. 

A água estendida ao longe, tocando o mar,
a mistura salina no lugar volátil. Incerto,
o meu coração agita-se ao eco
de há trinta anos. Mas estamos mortos:
eu, a cidade, o coração, tudo

o que resta é pouco mais que versos.
Boa merda, diga-se, placebo inútil,
mapa incerto. A melhor maneira
de deixar tudo como está. As gaivotas
ficaram, se não em terra, nos telhados,

descem com as pombas pela certa
às mãos das velhas, o mar
que se arranje como puder
e os barcos ficam para já sem asas.

Nós também voamos pouco, quase nada.
E se respiramos é só por hábito
ou por descargo de consciência.


(in A Caminho de Avoriaz, Cosmorama edições, 2011)





4 – Málaga – 1910                   
(Calle Marqués de Larios)

Esse velho hotel continua a chamar-se Nuevo
Hotel Victoria. Ó triste ironia da palavra
deixada à solta, insensatamente entregue
a si própria. Para além desta fenda
entre as palavras e as coisas, o Banco
Hispano-Americano já então deixava os seus créditos
por mãos alheias. O desgastado toldo da Ferreria

deixa marcas na qualidade do marketing
do ferro forjado, e essa numerosa multidão
que por esta calle caminha, onde continuará
agora a caminhar? Se na água deste rio
os olhos continuam a banhar-se duas vezes,
é tão somente porque esse voyeur entendeu
suspender a submissa ordem da morte.

Mas, se assim é, continuemos a olhar esta foto
de família estranha e distante, na ilusão
de que movendo o gesto se moverá a mão
que o esboça. Os rostos fechados
parecem temer o pior, só um ou outro sorriso
permanece insensível a quem lhe armadilha a imagem
para além do razoável prazo de validade.

Sepultados vivos, e assim estranhamente
vivendo a morte, eis a absurda sorte
desta multidão, que aí ficará por conta alheia
sem que para tal fosse consultada,
ou esclarecida em seus legítimos direitos
de imagem e privacidade.


(in A Caminho de Avoriaz, Cosmorama edições, 2011)



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista
                                                                 Fernando de Castro Branco © dos poemas


Fernando de Castro Branco (Duas Igrejas, 1959). Publicou, entre outros livros e ensaios, os volumes de poesia Estrelas Mínimas (2008), Plantas Hidropónicas (2008), Marcas de Verões Partidos (2009), Arte do Espaço (2009), estes dois últimos volumes integrados no volume A Carvão – Poesia Reunida. Assinatura Irreconhecível (2010) e A Caminho de Avoriaz (2011).

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