sábado, 19 de maio de 2012

Maria João Cantinho


Maria João Cantinho, poeta convidada


3 POEMAS


URGÊNCIA 

Um homem chegou e deitou-se, 
era aquele que avançava contra o vento frio, 
que se abraçava às palavras, às árvores, às flores 
e no seu ventre amanhecia a luz de uma chaga, 
de onde saiu um pássaro. 
As nuvens voavam à altura dos seus olhos 
e era preciso escutar a voz, o canto das sílabas 
que sufocava no sangue, 
a urgência, a terra contra o sangue 
que corria nos veios azuis do seu corpo. 
Na claridade do seu olhar movia-se velozmente 
a paisagem, como em incertos dias de Verão, 
nos seus olhos iluminava-se o assombro, 
reflectiam-se as imagens e as sílabas da catástrofe, 
a obscura gramática que neles se desenhava 
em linhas de solidão, como sulcos de água, 
escoando-se lentamente. 
Era preciso lembrar a luz, recordar os vestígios, 
o canto que emanava das vísceras, interrompendo o mundo, 
era ali o início do círculo, o lugar onde tudo recomeçava, 
o começo da liberdade, exacto, 
recapitulando o destino do voo alucinado, na noite. 
E era preciso não temer os nomes, a escuridão, 
a alquimia que tudo funde, emergindo do sonho. 
Era preciso não temer as imagens que se sucediam, 
a memória interrompida, antigos nomes 
que se escreviam contra as raízes, para que cantasse 
a glória da infância renascida. 
Na claridade do seu olhar, era já a morte em sonhos, 
florescendo no horizonte do tempo 
e então disse-me: bebe da minha luz, 
bebe, a noite descia, puro anil, 
bebe do meu sangue, bebe-me, 
só aí terei sido porque te vi. Sou tu.

(in  Sílabas de Água, Porto, 2006)






DESPERTAR A VOZ, SEGUIR O TRAÇO

É o mais difícil, este gesto
de amanhecer a palavra, o poema,
deixando-nos a sós com a brancura da página.
O canto não chega, quando o chamamos
tal como a luz não vem,
 senão de mansinho,
quando os flocos da noite se desvanecem
em orvalho límpido e claro.
E então a canção irrompe, novamente,
mas apenas para aquele que se senta à beira do início,
do seu início, e escuta.
É o mais difícil, este gesto
de descer à sombra, ao sem-fundo da linguagem,
para ouvir o canto. 
Que rastro, que traço é este, que nos visita
e nos desperta a voz, em manso segredo?
Que vislumbre nos toma e nos arrasta,
agora que um outro alfabeto nos é revelado, 
exterior ao dito, anterior ao hálito da palavra,
como se as sombras dos nossos antepassados
nos percorressem, por entre os nossos sonhos,
música límpida e tão próxima,
tão imponderável na sua aura?
Cantam em nós essas vozes, silentes,
mas que esvoaçam no vento, invisíveis,
cantam em nós, mas as suas vozes são de rio
e tempo, de outros tempos, 
em que também fomos outros.

(in O Traço do Anjo, Porto, 2011)







Há um país antigo que se abriga em mim      
um país de que não me lembro
senão de mim menina,  uma língua de sol e água
que se cola à minha pele, obstinadamente
quer ser tempo em mim,  quer ser boca  
procura a abertura,  escorre entre as fendas 
da memória, como um pássaro de asas feridas.
Há um país antigo que se abriga em mim
E eu procuro a voz do vento que o cante, 
Nessa harpa fria que é memória minha.

(inédito)





Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas© de Maria João Cantinho



Maria João Cantinho nasceu em 1963. Publicou “A Garça” (ed.Diferença, Leiria, 2001), “O Anjo Melancólico” (ed.Angelus Novus, Coimbra, 2003), “Sílabas de Água” (Ver-o-Verso, Porto, 2006), “Caligrafia da Solidão” (ed. Escrituras, S. Paulo, 2006), “O Traço do Anjo” (edium editora, Porto, 2011), entre outras obras. Actualmente é professora no Secundário e no Iade, crítica e poeta.

1 comentário:

  1. "Há um país antigo que se abriga em mim" MJC

    Lindíssima a poesia de Maria João Cantinho.

    Obrigada Amadeu Baptista!!

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