Maria João Cantinho, poeta convidada
3 POEMAS
Um homem chegou e deitou-se,
era aquele que avançava contra o vento frio,
que se abraçava às palavras, às árvores, às flores
e no seu ventre amanhecia a luz de uma chaga,
de onde saiu um pássaro.
As nuvens voavam à altura dos seus olhos
e era preciso escutar a voz, o canto das sílabas
que sufocava no sangue,
a urgência, a terra contra o sangue
que corria nos veios azuis do seu corpo.
Na claridade do seu olhar movia-se velozmente
a paisagem, como em incertos dias de Verão,
nos seus olhos iluminava-se o assombro,
reflectiam-se as imagens e as sílabas da catástrofe,
a obscura gramática que neles se desenhava
em linhas de solidão, como sulcos de água,
escoando-se lentamente.
Era preciso lembrar a luz, recordar os vestígios,
o canto que emanava das vísceras, interrompendo o mundo,
era ali o início do círculo, o lugar onde tudo recomeçava,
o começo da liberdade, exacto,
recapitulando o destino do voo alucinado, na noite.
E era preciso não temer os nomes, a escuridão,
a alquimia que tudo funde, emergindo do sonho.
Era preciso não temer as imagens que se sucediam,
a memória interrompida, antigos nomes
que se escreviam contra as raízes, para que cantasse
a glória da infância renascida.
Na claridade do seu olhar, era já a morte em sonhos,
florescendo no horizonte do tempo
e então disse-me: bebe da minha luz,
bebe, a noite descia, puro anil,
bebe do meu sangue, bebe-me,
só aí terei sido porque te vi. Sou tu.
(in Sílabas de Água, Porto, 2006)
DESPERTAR A VOZ, SEGUIR O TRAÇO
É o mais difícil, este gesto
de amanhecer a palavra, o poema,
deixando-nos a sós com a brancura da página.
O canto não chega, quando o chamamos
tal como a luz não vem,
senão de mansinho,
quando os flocos da noite se desvanecem
em orvalho límpido e claro.
E então a canção irrompe, novamente,
mas apenas para aquele que se senta à beira do início,
do seu início, e escuta.
É o mais difícil, este gesto
de descer à sombra, ao sem-fundo da linguagem,
para ouvir o canto.
Que rastro, que traço é este, que nos visita
e nos desperta a voz, em manso segredo?
Que vislumbre nos toma e nos arrasta,
agora que um outro alfabeto nos é revelado,
exterior ao dito, anterior ao hálito da palavra,
como se as sombras dos nossos antepassados
nos percorressem, por entre os nossos sonhos,
música límpida e tão próxima,
tão imponderável na sua aura?
Cantam em nós essas vozes, silentes,
mas que esvoaçam no vento, invisíveis,
cantam em nós, mas as suas vozes são de rio
e tempo, de outros tempos,
em que também fomos outros.
(in O Traço do Anjo, Porto, 2011)
Há um país antigo que se abriga em mim
um país de que não me lembro
senão de mim menina, uma língua de sol e água
que se cola à minha pele, obstinadamente
quer ser tempo em mim, quer ser boca
procura a abertura, escorre entre as fendas
da memória, como um pássaro de asas feridas.
Há um país antigo que se abriga em mim
E eu procuro a voz do vento que o cante,
Nessa harpa fria que é memória minha.
(inédito)
Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista
Poemas© de Maria João Cantinho
Maria João Cantinho nasceu em 1963. Publicou “A Garça” (ed.Diferença, Leiria, 2001), “O Anjo Melancólico” (ed.Angelus Novus, Coimbra, 2003), “Sílabas de Água” (Ver-o-Verso, Porto, 2006), “Caligrafia da Solidão” (ed. Escrituras, S. Paulo, 2006), “O Traço do Anjo” (edium editora, Porto, 2011), entre outras obras. Actualmente é professora no Secundário e no Iade, crítica e poeta.
"Há um país antigo que se abriga em mim" MJC
ResponderEliminarLindíssima a poesia de Maria João Cantinho.
Obrigada Amadeu Baptista!!