quarta-feira, 9 de maio de 2012

João Camilo


João Camilo, poeta convidado



TRÊS POEMAS INÉDITOS



Outono ainda

A palavra é nada. Mas às vezes é
tudo o que parece acontecer
quando os olhos e as mãos
as pernas e o coração
não encontram o caminho dos
sentimentos, o porto de
abrigo de onde recomeçar
a velha história. Interrupção.
A palavra, que é nada, serve
de muro onde apoiar-se,
de almofada onde encostar
brevemente a cabeça. E
respiramos.

Abanavam ao vento as folhas
e os frágeis ramos das árvores.
Os homens e as mulheres que
passavam na rua em frente
do café prosseguiam, sem darem
por nós, o seu destino incerto.
Não há mistérios, é verdade, mas
existe o amor e a esperança do
amor, o passado e a memória
dos erros e da alegria, o
futuro e a imaginação do
paraíso. O tempo é habitado,
aquilo a que chamamos a vida
parece ter sentido. Para quê
duvidar, atirar ao vidro da
janela uma pedra, interferir
com o correr natural dos rios
para o mar? Para quê, de facto.

Existe o amor e existe o ódio.
Existe a paz e existe o inferno.
Para aquele que aprendeu a viver
todos os estados de espírito
se equivalem. Aprende-se a ir
pelo caminho da vida como o
barco que navega entre as
rochas e sabe evitar os fundos
traiçoeiros. Aprende-se a olhar
com indiferença para aqueles que
na estrada que atravessamos
esconderam objectos e imprecações.
Afastar-se de quem com falsas
palavras de amor tenta exercer
sobre nós a doença do seu poder
é fácil e necessário. De todos
os percalços e inquietações
nos cura a tarde de sol sossegada.
E esquecemos os nossos inimigos
e a sua ingénua ilusão, o seu
impotente talento: inacessíveis à
perturbação e ao medo, contemplamos
as paisagens do mundo, o infinito.




Bela cidade

Cidade de oiro da infância e da adolescência,
pelas tuas ruas luminosas passeei-me, melancólico.
Pátria de quem, agora? Na direcção de que
futuro caminham os teus apressados transeuntes?
O amor, esse mito incómodo que nos acompanhou
durante os anos do exílio, bate molemente as asas,
céptico e desiludido. O futuro a quem pertence?
Jovens raparigas e rapazes ocuparam os lugares
que um dia foram nossos. Acreditámos na eternidade
de todos os sentimentos? Mas ouvimos, enfim,
o eco das palavras que escreviam e declamavam
os sábios: nada, ninguém, pertence, tudo é de
empréstimo; e a terra que engolirá os ossos
e a cinza dos sonhos, indiferente espera por
nós, o pó. O sol brilha ainda, nas montras das
livrarias erguem-se os rostos e as vozes imortais.
Algazarra imensa, ó ilusão. Poetas amantes das
palavras e perdidos da vida sentam-se ainda nas
esplanadas dos cafés a meditar. Silhuetas pesadas
que ninguém vê. Quem tem destino, a quem é
concedida, senão aos inexistentes deuses, a
duração? Bela cidade de pedras brancas
sob o céu azul, nas tuas ruas passeei a
minha melancolia. Não estava triste, não
sofri, aprendia apenas, de novo, e mais
claramente, que tudo é vaidade, mentira,
que tudo é ficção. Dias absurdos, insensatez.
De sonho em sonho, adiamos o entendimento
da morte, o pavor do vazio, o terror do nada.









oração à santa

a santa olha para o céu com muita serenidade
a alma da santa é uma pomba branca imaculada

os pés descalços da santa pisam o chão das abadias
as mãos da santa cruzam-se santamente muito brancas

eu queria amar a santa seduz-me a sua pureza intacta
queria sentir colado ao meu o seu corpo sobrenatural

sou um pobre pecador a santa ignora o meu desejo
dá aos moços da cavalariça o que me recusa a mim

eu sofro a olhar para a imagem da santa de perfil
para os seus olhos onde resplandece a santidade

vêm-me desejos insensatos de lhe morder a boca
de lhe dizer no ouvido baixinho obscenidades

ó santa tem piedade de mim e do meu infortúnio
estende a tua mão divina para a minha solidão

eu depois tiro-te do altar e levo-te às compras
passamos a tarde na cidade vamos ver as montras

podes escolher sapatos saias vestidos e camisas
um enxoval completo para as tuas santas núpcias

casas-te com o duque na catedral das abóbadas seculares
e o heróico descendente renascerá no teu ventre ámen jesus

eu ofereço-me para apadrinhar o triunfo de tão santo amor:
maldição eterna em nome de cristo nosso senhor

surgiu-me quando fitava o horizonte na sexta-feira à tarde
de entre as nuvens a estampa da tua beata integridade

antes de seres santa por que caminhos penaste ó renascida
ó ressuscitada dos pecados ancestrais da raça mais boçal

ajoelho-me às tuas pernas cheio de emocionada adoração
toco com os meus dedos impuros a seda da tua saia branca

se olhas para o céu com esse ar de palerma embevecida
deixas de ser a minha padroeira nas dificuldades da vida

tu que nunca conheceste ó santa amada a sombra do pecado
leva-me por veredas secretas até aos cimos consagrados

hei-de de longe deleitar-me a contemplar a tua virtude
serei o mais fiel devoto da tua impoluta juventude

pede a deus por mim intercede sempre em meu favor
e talvez no meu ferido coração volte a florescer o amor



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas© de João Camilo

João Camilo. Licenciado em Filologia Românica pela Universidade Clássica de Lisboa e Doutorado em Letras pela Université de Haute Bretagne. Ensinou nas universidades de Oslo, Rennes, Aix-en-Provence, Grenoble. Entre 2000 e 2003 foi Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres. É, desde 1989, Professor Catedrático de literatura poetuguesa, brasileira e comparada e Director do Center for Portuguese Studies na Universidade da Calfórnia em Santa Bárbara, onde criou a revista Santa Barbara Portuguese Studies. Além de ensaios em revista ou em livro, publicou vários livros de poemas e de ficção. Alguns títulos: A Mala dos Max Brothers (Lisboa, 1989); Nunca Mais se Apagam as Imagens (Lisboa, 1996); Retrato Breve de J.B. (Porto, 1975, Lisboa, 2ª. edição, 2006); O Som Atinge o Cimo das Montanhas (Entroncamento, 2006); Um Animal de Pele Branca, Imaculada (Entroncamento, 2006)

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