quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Sair à rua / 5



José Manuel de Vasconcelos


José Manuel de Vasconcelos, poeta convidado


TRÊS POEMAS


SÉPIA

Rumorosa e perdida, parada num verão de pó
essa imagem ali estava perturbando o meu ritmo
a linha cronometrada dos meus dias
tombando pétrea e vocativa numa certa
bem-aventurança que o sol adornava de cansaço
Aparecia como um adjectivo de um mundo já de trevas
um vórtice de escolhos na ondulação de um mar de tédio
no silêncio subterrâneo dos dias que fugiam
Era de certo modo um novo alfabeto
surgindo de fontes agora eternamente inúteis
mas ainda assim gotejando nesta dourada água
torturando-a num estrondo inatingível e resignado
como se de repente fosse o meio da noite
e a minha cabeça andasse arrastada por cavalos
os degraus da nossa casa previssem o começo de um abismo
Quantos anos teriam passado? Séculos tristes atrás de persianas
viagens iludidas, palavras agora desmembradas
na audácia de um mundo à deriva como um espelho
que cansado deixasse de reflectir os contornos exactos
das coisas e engendrasse monstros, colossais assombros
desvairados prodígios cujas asas nos tocassem numa afronta
A vida zune agachada como um caçador furtivo
puzzle de enganos a dois dedos das margens onde os outros
nos olham sob o peso dos seus infernos
Revejo a imagem ¾  perdura sob esta lâmpada em que navega
o meu peito. Há ainda um pouco de noite para acreditar que
a massa da morte tudo distende, que é possível asilar esta dor
vacilar a vida no trémulo fio que a cinza do tempo morde
mas agora, entre cinza e nuvem, é preciso escrever tudo de novo

De O Inferno é seguro







O ODOR DAS ALFAVACAS

Meu pai, falava do odor das alfavacas
e eu corria ao dicionário («Planta labiada, semelhante
ao mangericão...»), decepcionado.
Imaginava uma vaca primordial
depositária de bíblicos segredos
capaz de mudar o curso das coisas
e de ser fundamental, talvez, na minha vida
mas nada disso: havia-as de caboclo, de cobra, dos montes,
do campo, de cheiro (certamente a do meu pai)
e nenhuma referência à cornuda em que se apascentava
a minha imaginação.
Aprendi assim a desconfiar das palavras
e da realidade
a ver como ambas nos enganam
sem qualquer piedade


De A mão na água que corre






PORTUGAL 1950

Tudo parece ter parado
nesta estrada de silábico
preto e branco
No vinho rudimentar dos dias
o tempo cede à própria imagem
de quem reza rodeado de cabras
no largo chão acabado de pisar
com pé descalço e cântaro à cabeça
Só sombras escorregam dentro
da morfina da luz que
como uma granada
se multiplica em lassidão
de olheiras opacas
As horas são ossos desabrigados
paisagem sem transporte
que muito ao longe estala em repetidas caravelas
Nas vozes servis de escuros animais
nada ilumina o abismo
nem a festa brava desse esgar espantado
atirado ao metal do verão
Resta o olhar dos miúdos
começo de vento e espasmo comprimido
a inventar um vidro
pra decompor o sol na mão

Inédito




Fotos (ilustração dos poemas) Alcobaça: © de Amadeu Baptista

Poemas: © José Manuel de Vasconcelos

José Manuel de Vasconcelos nasceu em Lisboa, é licenciado em Direito e exerce a advocacia. Poeta, ensaísta e tradutor, publicou, Mirífica miragem, As casas e o vento, O tempo fora do tempo, O inferno é seguro e  A mão na água que corre (Prémio Melhor Livro de Poesia SPA/RTP 2012), tendo para publicação próxima um novo livro de poemas, e a reunião dos seus ensaios literários. Colaborador de diversos jornais e revistas literárias, escreveu prefácios e estudos introdutórios, bem como textos teóricos sobre tradução, e sobre artes plásticas. Colaborou em diversas antologias. Tem-se dedicado à divulgação da literatura italiana, tendo organizado uma Antologia do Futurismo Italiano, e tendo traduzido poetas como Eugenio Montale e Umberto Saba.  É colaborador do «Osservatorio Permanente Sugli Studi Pavesiani Nel Mondo»

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Gyrdir Eliasson


Poemas de Gyrdir Eliasson



SONHO

Muito dentro dos olhos

uma estranha película
projecta-se
em cada noite

sobre uma tela azul escuro

o realizador dorme
na fila treze

na sala alcatifada a vermelho

é
a última oportunidade

só restam
umas poucas sessões

muito dentro dos olhos.


Svarthvít axlabönd, 1983


OLHO POR OLHO DE CRISTAL

Está claro esta manhã
quando acordo que algum
diabo anda solto
desapareceu a fileira de casas em frente
eu esfrego os olhos abano a cabeça
volto a abri-los mas tudo é
inútil
essas quase quarenta casas (pelas noites
vi muitas vezes um reflexo azulado escapar
pelas janelas das salas)
desaparecidas o aparcamento também
nem marca da mínima edificação de algum
tipo (e agora por fim vê-se outra vez
a montanha daqui após ter estado dez anos
escondida) contenho-me com dificuldade
para não me arrancar os cabelos o meu apartamento
dança perante o meu olhar
o suor salta a água fria
corre apresso-me a ir ao espelho
e fixo as suspeitas.

Bakvid maríuglerid, 1985


PONTOS DE SUTURA

Agora já não há quem o salve
disse a si mesmo quando
saiu à varanda e viu que
o sol se dessangrava pela convexidade
do mar que ia dar às ilhas compreendeu
também que mais tarde ou mais cedo teria
que reconhecer a redondez da terra.
puxou de uma navalhita com brancas incrustações de concha
e começou a limpar as unhas com
movimentos lentíssimos que recordavam
o que contam das antigas cerimónias rituais
dos incas. logo voltou a levantar os olhos.
sorriu friamente e cravou a navalha
rapidamente na jugular.

Bakvid maríuglerid, 1985


COMPAIXÃO

Caminho
pelo páramo
através da treva
e visões
aladas voam à minha
volta.

Vou
pela mar
através da treva
e as aves nocturnas
pousam no meu
barco.

Não estou
nunca
completamente só.

Tvö tungl, 1989

ESPELHO

Muitas vezes saio da minha
casa ao entardecer e
vagueio por becos de cimento sob
os olhos amarelos dos faróis e
estou às vezes
deprimido sem saber
por quê mas suspeito
que outro mundo ainda mais
sombrio está pegado
a esta abóbada celeste que a noite
contempla.

 Tvö tungl, 1989


CRIATURAS DE LUZ

O bolbo da minha lâmpada
é habitado por gente que
tem ventosas nos pés
e sobe pelo vidro delgadíssimo
por dentro e dorme em redes
de molas tensas no topo da lâmpada
e quando a apago
à noite ouço os débeis
roncos do casquilho.

E então volta a acendê-la
às vezes.

Tvö tungl, 1989


PENSAMENTOS NOCTURNOS ORIENTAIS

Na minha varanda
há uma estranha lanterna
que lembra imagens
da antiga China
ou de um farol na escura
praia do pensamento.

É para tê-la
acesa na escuridão
das noites tranquilas
esquadrinhando o vaso
sob a luz.

E pensar na morte
e pensar na vida.

Vetraráform um sumarferdalag, 1991


SOLILÓQUIO

Sempre
desejei
chegar a uma ilha
muito pequena que se
visse que é uma ilha e é fácil
de percorrer
numa hora com
sol ou com chuva
e ver os pássaros
batendo as asas na
sua solidão.

E adormecer logo
ali na praia
e chegar a ter deste modo
asas
e amigos.

Mold í Skuggadal, 1992


PÁSSARO CEGO / VOO NEGRO

Tranquilidade não posso dar
posto que não a tenho
a autonomia de voo
de ideias inquietantes parece
inesgotável, ascendem pela abóbada e flutuam noite
após noite como que dotadas de asas entre
as colunas, deitado as sigo
através do vidro, pouco falta
para que pousem um instante
nas paredes adesivas.

Estranhamente frágil esse
rápido fitar de olhos,
como se num ovo tivessem pintado
manchas negras.

Nada interrompe o silêncio excepto
o gotejar das caleiras, a apagada
luz da rua ziguezagueia através
do desenho irregular das cortinas, estou
só à mesa, chá numa chávena
de porcelana japonesa, volto a pensar nos
olhos, como explodem.

É a hora das vassouras de palha e as corujas
estendem as suas asas manchadas
junto aos morcegos.

Os telhados de cobre das torres reluzem sob o débil
brilho do grande farol de gás
aqui sou um estranho, dou uns poucos
vacilantes passos calculados pela
praça das pombas como se temesse
que houvesse minas ou armadilhas
colocadas para caçar cornúpetos.

Blidfugl/Svartflug, 1986


f

O chá está frio e
acabam de apagar o televisor
(reportagem sobre a páscoa em israel)
quando um cogumelo brilhante enche a janela
o rectângulo de paisagem cai ao mesmo tempo da
parede um instante detêm-se escutam atiram-se
ao chão amontoam-se no puído tapete
voltam a fechar os olhos
recordas
o forno
de
e chorou
ai grita
ela
queres
dizer
as parcas
balbucia
ele engolindo ar ardente e afogando-se…

Einskonar höfudlausn, 1986


pp

Cadeira jaqueta branca rosa espelho
parede rugosa quadro moldura dourada
chão de ladrilhos cama sem colcha
baú lata azul pálido e um forno
frio e deslustrado fecham os olhos
ante a chegada da sombra do
chilreio tranquilo e a voz cinzenta
de um gravador da mesma cor.

Einskonar höfudlausn, 1986


MUITO LONGE

Lá durmo
envolto num sonho
de lagoas e montanhas
e maçãs em cestas
e menino a comer maçãs
ao sol nas ilhas
cinzentas azuladas que surgem do mar
longe da costa (distantes
três horas de navegação).

Mas os olhos estão abertos
eu olho e estou
completamente imóvel e o vale
respira na névoa
fora da janela
esta noite de verão.

Vetraráform um sumarferdalag, 1991


DIARIAMENTE

Diante da minha casa arrastam-se
diariamente milhares e milhares
de insectos mecânicos diariamente no meio
de um tempo criminal ou de uma bonança inolvidável
e de todas as fases intermédias ronroneiam à guisa
de despedida e desaparecem não
sei onde mas se alguém fixa
o tempo suficiente os rectangulares
olhos das casas vê que
as colinas banhadas de sol do outro lado da ponte
sobre a enseada cobrem-se de escuras manchas
à medida que passa o tempo

nunca estive lá
(o plano detalhado do sector
não revela exactamente nada)
onde mastins altíssimos de aço se espreguiçam
escalando o céu azul pálido nos
intervalos e quando a escuridão domina
recolho-me na minha dura concha
e não respondo ao telefone.

Bakvid maríuglerid, 1987


A QUEDA DO MACHADO (FRAGMENTO)

O machado está surpreendentemente pouco ensanguentado
a cabeça caiu na
cesta de vime e jaz sem
que se lhe vejam os olhos.
a multidão como um véu cinzento
na praça um véu cinzento que
se agita com  brisa dominical
mas não deixa passar o sol ao
seu través.
Alto!
grita o realizador saltando
da cadeira. Magnífico!
Puxo de um lenço
e enxuga o rosto
satisfeito. Bem, levai o
cadáver! Deita um olhar
rápido ao cenário
repleto de câmaras. Tenta
esquecer o zumbido contínuo nos
seus ouvidos e volta
a pensar contrariado
no director da prisão…

Bakvid maríuglerid, 1987


PARADOXOS IRREGULARES

O asfalto como uma fita negra
no deserto limitado
a hora aproxima-se vacilante
pára-raios torcidos abrem
os seus inumeráveis olhos carregados de sonho
o instante
congela tudo está entumecido já começam as casas
a desmoronar em silêncio as geladas mãos do vento
deslizam por entre os montões de pó que ficam
como uma jugular que se estreita perante o sinal de perigo
alarga-se a rua numa delgadíssima listra
as pontas da relva cobrem-se de sujidade cinzenta
de uma antiga passagem entre as casas sai um homem
correndo sem cabeça mas sem sangrar
(visto devagar em primeiro plano transforma-se numa
cruz depreciada ou num pilar de lojista em que
a tempestade tivesse emaranhado as roupas sobre umas pegadas
imediatamente cobertas pela areia persegue-o um
exército de térmitas que chegam de todas as direcções)
o entardecer moldou-se entre os barrotes
de ferro até à esbotenada jarra de flores e bebe
nela eu não me fixo em nada recordo outros momentos
sob um sol maior que a lâmpada de quarenta
vátios da minha cabeceira.

Bakvid maríuglerid, 1987


PERFIL DE UM MANÍACO

Descartei
o cinema
porque temo que precisamente
durante uma cena lenta e prolongada (dois
tipos sujos um careca
com uma cabeça que lembra as velhas
máquinas fotográficas carrega uma maleta e um anel
de ouro num dedo que arranca do corrimão
da escada de que sobe um som metálico)
me atire à rede impoluta 
dos meus pensamentos o louco
do assento detrás
sacando
um fio sibilante de aço…

Bakvid maríuglerid, 1987


Versão minha - © Amadeu Baptista


Gyrdir Eliasson, nasceu em 1962. Os seus poemas, íntimos e ricos em imagens, falam sobretudo da solidão, a sensibilidade, o perigo da destruição, com referências aterradoras chegadas da comunicação social e da cultura do ócio dos nossos dias. Publicou mais  de um dezena de livros de poesia, além de romances e contos. A sua prosa caracteriza-se pela sua força expressiva, semelhante à da poesia.

domingo, 28 de outubro de 2012

Luca Signorelli / 2



'Ressureição da Carne'(detalhe) (ciclo Storie degli ultimi giorni),
de Lucca Signorelli
Fresco
cerca de 1499-1502
Capela de S. Brízio, Duomo, Orvieto


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Albano Martins


Homenagem a Albano Martins
Dia 27 de Outubro, 16 horas
Casa de Cultura José Marmelo e Silva
Freguesia do Paul

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O Bosque Cintilante # 66

Antonio Vivaldi: Outono, de As Quatro Estações

Que memória haverá da gôndola vermelha que atravessa o canal,
quando eu morrer?
Que sombras beneficiarão a Piazzeta
e iluminarão a noite,
quando eu morrer?
Quem consolará Beatrice, Belvidera
e Orietta,
quando eu morrer?
Continuarão a chamar-me demónio
e a condenar a angústia
que me afeiçoa às mulheres e me afasta do culto,
quando eu morrer?
Que música ondulará sobre Sant'Angelo,
quando eu morrer?
E as órfãs,
as órfãs do Pio ospedale della Pietà,
quem velará o sono das órfãs,
quando eu morrer?
Quem se debruçará da janela
para melhor escutar a plangência divina
que exprime o sublime,
quando eu morrer?

Deus?
Os anjos?
O próprio outono?


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista




quarta-feira, 24 de outubro de 2012

João Ricardo Lopes


João Ricardo Lopes, poeta convidado




DO SILÊNCIO

1. AMENDOEIRA EM FLOR

a luz desta árvore entra na sala de aula e com ela entra van Gogh.
a perfeição dos ramos e das folhas rosadas não impressiona o homem comum
mas ergue ao velho lavrador o olhar abismado como se a ele também 
fosse partilhado o dom da LEITURA

aos pequenos falantes da língua ensino eu a gramática das frases e dos sentidos
mas é em van Gogh e no velho lavrador que incide o clarão alado desta manhã.
é na natureza que subtis e perfeitas regras de regência amplificam 
o corpo aberto e baloiçante do poema

como van Gogh, como o mestre humilde da terra, sou escravo desta luz 
que atordoa e depura, não apenas o vidro da janela, mas a concreta vida 
dos minutos, do saber que professo, das lições que fecundarão (quem sabe) 
outras vozes, outros ecos deste prodígio amado e quase invisível







2. SILÊNCIO DE ARRECADAÇÃO

dai-me senhor a grande paz
da sala dos arrumos, dos armários 
de arquivo, dos caixotes selados e
proibidos de abrir, o grande silêncio 
da penumbra e placares vazios 
de cortiça, o amor da sombra e
fita-cola adesiva, dos objetos caídos
no seu próprio sono de arrecadação.
sob a pionés palavra nenhuma
debaixo da janela a ausência de rumor.
dentro de mim apenas isto:

FRÁGIL. NÃO MEXER!







3. PELAS FRINCHAS DA GARAGEM

pelas frinchas da garagem 
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas 
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco
coisas dispersas despejadas pelo
tempo na superfície da pele

sem nome é o cheiro do 
silêncio, como o rosto que nos
pertencia e hoje não passa de
gelo, talhado a esmo
nas frestas da memória





Fotos (ilustração dos poemas) Luxemburgo: © de Amadeu Baptista

Poemas: © João Ricardo Lopes

João Ricardo Lopes (n. 1977) é pós-graduado em Teoria da Literatura, tendo sido bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1995 e 1999. Leciona a disciplina de Língua Portuguesa no ensino básico e secundário, tendo publicado cinco livros de poesia e um de crónicas. Leitor ávido de poesia das mais diversas proveniências no mundo, viu alguns dos seus poemas serem traduzidos para inglês, francês, servo-croata e castelhano. É autor do blog DIAS DESIGUAIS, em www.diasdesiguais.blogspot.com.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Tomas Tranströmer



POEMAS DE TOMAS TRANSTRÖMER



ALLEGRO

Após um dia negro toco Haydn
e sinto um humilde calor nas mãos.

As teclas obedecem. Golpeiam doces martelos.
O acorde é verde, vivo e sereno.

O acorde diz que a liberdade existe
e que alguém não paga imposto a César.

Meto as mãos nas algibeiras haydn
e imito alguém que contempla o mundo com serenidade.

Faço bandeira de haydn – isso quer dizer
«Não nos rendemos. Mas queremos paz.»

A música é um edifício de cristal na encosta
onde voam as pedras, as pedras giram.

E as pedras atravessam a casa rolando
mas todos os vidros permanecem intactos.

Den halvfädiga himlen, 1962



SOLIDÃO

I

Aqui estive a ponto de morrer numa noite de Fevereiro.
O carro derrapou no gelo e foi de lado para
o outro lado da estrada. Os carros que vinham
na direcção contrária
– os seus faróis – aproximaram-se.

O meu nome, as minha filhas, o meu trabalho
libertaram-se e ficaram para trás em silêncio,
cada vez mais longe. Fiquei anónimo
como uma criança no pátio da escola, rodeado de inimigos.

O tráfego contrário tinha luzes potentes.
Focavam-me enquanto eu guinava o volante
num pânico transparente que flutuava como clara de ovo.
Cresceram os segundos – ali havia espaço –
tornaram-se grandes como hospitais.

Quase pude parar
e respirar um instante
antes de embater.

Então surgiu um auxílio: ajudou-me um compassivo grão de areia
ou um maravilhoso golpe de vento. O carro endireitou-se
e rastejou veloz para o outro lado da estrada.
De súbito apareceu um poste e partiu-se – um som seco –
desapareceu a voar na obscuridade.

Até que tudo ficou calmo. O cinto manteve-me no assento
e vi alguém acercar-se por entre a borrasca de neve
para ver o que me tinha acontecido.



II

Andei muito tempo
pelos gelados campos de Östergötland.
Jamais vi uma alma.

Noutras partes do mundo
há quem nasça, viva, morra
em permanente reunião.

O estar sempre visível – viver
num enxame de olhos –
confere ao rosto uma expressão singular.
Rosto coberto de argila.

O tumulto sobe e desce
enquanto se dividem entre si
o céu, as sombras, os grãos de areia.

Eu preciso de estar só
dez minutos pela manhã
e dez minutos à noite.
– Sem programa.

Todos fazem fila perante todos.

Muitos.

Um.

Klanger och spår, 1966



CITOYENS

Na noite após o acidente sonhei com um homem picado das
    bexigas
que andava a cantar pelas ruas.
Danton!
Não o outro – Robespierre nunca dá esses passeios.
Robespierre gasta uma hora a ataviar-se cuidadosamente pelas manhãs
e dedica o resto do dia ao Povo.
No paraíso dos panfletos, entre as máquinas da virtude,
Danton –
ou o que levava a sua máscara –
caminhava como que em andas.
Eu via o seu rosto de baixo:
como uma lua cheia de cicatrizes,
metade iluminada, metade enlutada.
Quis dizer algo.
Um peso no peito, o peso
que faz andar os relógios de pêndulo,
que faz dar voltas aos ponteiros: ano 1, ano 2…
Um cheiro azedo como o do serrim da jaula dos tigres.
E – como sempre nos sonhos – nada de sol.
Mas as paredes brilhavam
nos becos que se retorciam,
descendo até à sala de espera, o quarto arrevesado,
a sala de espera onde todos nós…


N. do T. Título em francês, no original; Danton: referência a Georges Jacques Danton, figura destacada
no início da Revolução Francesa.


Sanningsbarriären, 1978



CARRILHÃO

Madame despreza os seus clientes porque querem viver no seu
    funesto hotel.
Eu estou no quarto da esquina do segundo andar: uma cama
    miserável, uma lâmpada nua no tecto.
Surpreendentemente, pesados cortinados por onde desfilam um quarto
    de milhão de ácaros invisíveis.

Diante do hotel, uma rua pedonal
por onde passam turistas lentos, velozes académicos, homens vestidos
    com roupas de trabalho que levam pela mão bicicletas escandalosas.
Os que crêem que fazem girar o mundo e os que crêem que dão
    voltas impotentes, sob a palmatória do mundo.
Um rua por onde andamos todos, onde desemboca?
A única janela do quarto dá para um lugar muito diferente:
    a Praça Selvagem,
um chão que borbulha, uma extensa superfície palpitante, às vezes cheia
    de gente e às vezes deserta.

O que levo dentro materializa-se nessa praça, todo o horror, todas
    as esperanças.
Todo o inconcebível que no entanto vai ocorrer.

Tenho umas margens muito baixas, se a morte subisse dois centímetros
    inundar-me-ia.

Sou Maximiliano. Estamos no ano de 1488. Têm-me fechado aqui
    em Brujas
porque os meus inimigos estão indecisos –
são um perversos idealistas e o que fizeram no pátio de trás
    dos horrores não o posso descrever, não posso converter
    o sangue em tinta.

Sou também o homem macaco que arrasta a sua escandalosa
    bicicleta pela rua.

Sou também aquele a quem se vê, o turista que caminha e se detém,
    caminha e se detém
e passeia o seu olhar sobre os pálidos rostos queimados pela luz da
    lua e as inchadas telas dos antigos quadros.

Ninguém decide aonde vou, e eu muito menos, no entanto cada passo
    está onde deve estar.
Vagar pelas guerras fósseis onde todos são invulneráveis porque
    todos estão mortos!

As pulverulentas massas de folhagem, os muros com as suas ameias, as
    veredas dos jardins onde as lágrimas petrificadas rangem
    sob os tacões…

Tão inesperadamente como se tivesse pisado o cordão que desencadeia
    o alarme, os sinos começaram a tocar no campanário
    anónimo.

Carrilhão! O saco rebenta pelas costuras e os acordes rodam sobre
    a Flandres.
Carrilhão! O ferro fundido dos sinos, salmo e canção melódica,
    tudo em um, escrito no ar tremulamente.
O trémulo doutor escreva sua receita que ninguém pode decifrar
    ainda que reconheçam a sua caligrafia…

Sobre telhados e praças, sobre erva e hortos
soam os sinos para vivos e mortos.
Entre Cristo e Anticristo a distinção redunda indiferente!
Voando os sinos levam-nos a casa finalmente.

Calaram-se.

Regressei ao quarto do hotel: a cama, a lâmpada, os
    cortinados. Aqui ouvem-se ruídos estranhos, o sótão
    arrastando-se sobe as escadas.

Estou deitado na cama com os braços em cruz.
Sou uma âncora que se cravou profundamente e que domina
    a sombra imensa que flutua aí em cima,
o grande desconhecido de que faço parte e que seguramente é
    mais importante do que eu.

Fora passa a rua pedonal, a rua onde morrem os meus passos
    assim como o escrito, o meu prólogo ao silêncio, o meu salmo voltado
    de revés.


N. do T. Maximiliano: Maximiliano I de Habsburgo, Imperador do México; Brujas: cidade da Flandres.

       Det vilda torget, 1983


Versão minha - © Amadeu Baptista



Tomas Tranströmer. Nasceu em 1931 em Estocolmo, onde se licenciou em Filosofia e Letras. Colaborou na revista Upptakt. O seu primeiro livro de poemas, 17 dikter (17 poemas), que data de 1954, foi um acontecimento literário que colocou o seu autor num lugar de destaque entre os autores da sua geração. Trabalhou como psicólogo, na área da reabilitação de delinquentes juvenis e readaptação de deficientes físicos. Em 2011 recebeu o Prémio Nobel de Literatura.

domingo, 21 de outubro de 2012

Vasco Graça Moura





HOMENAGEM-COLÓQUIO VASCO GRAÇA MOURA: 50 ANOS DE VIDA LITERÁRIA
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 
23 Outubro de 2012 

Anfiteatro IV

 PROGRAMA


9h30m – Inscrições
9h45m – Abertura
10h00
Vítor Aguiar e Silva (Univ. Minho), Vasco Graça Moura, Camonista.
José Carlos Seabra Pereira (Univ. Coimbra, UI&D-CIEC), Presenças do "decassílabo da chama" na poética de Vasco Graça Moura.
11h00m Discussão
11h15m Pausa para café
 11h45
Maria do Céu Fialho (Univ. Coimbra, UI&D-CECH), Na poesia de Vasco Graça Moura: scherzo e recriação sobre a Musa Antiga.
Sandra Teixeira (Univ. Poitiers), As musas de Vasco Graça Moura: dos corpos saturados às dobras do  mundo.
12h45m Discussão.
13h00 Pausa
14h30
Carlos André (Univ. Coimbra, UI&D-CECH), Amores e desamores na encruzilhada dos clássicos (ou as voltas incertas de VGM).
Adriana Freire Nogueira (Univ. Algarve, UI&D-CECH), A ficção narrativa de Vasco Graça Moura.
15h30 – Discussão
15h45
Teresa Carvalho (UI&D-CECH), Vasco Graça Moura e as Artes: «écfrase, empernamentos».
Rita Marnoto (Univ. Coimbra, UI&D-CIEC), Nas florestas da noite. Vasco Graça Moura tradutor.
16h45 Discussão
17h00 Pausa
 17h30m Lançamento da antologia A vista desarmada, o tempo largo – poetas em homenagem a Vasco Graça Moura (Quetzal / CECH), com apresentação de Ana Marques Gastão.
18h00 Encerramento – Vasco Graça Moura