ATÉ AO ENTARDECER ARREFECE O DIA
I
Até ao entardecer arrefece o dia...
Bebe o calor da minha mão,
a minha mão tem o mesmo sangue que a primavera.
Toma a minha mão, toma o meu braço branco,
toma a nostalgia dos meus ombros magros...
Seria maravilhoso sentir,
uma única noite, numa noite como esta,
o peso da tua cabeça no meu peito.
II
Atiraste a rosa vermelha do teu amor
no meu branco regaço -
tenho nas minhas mãos ardentes
a rosa vermelha que não tardará a murchar...
Oh, soberano de olhos frios,
aceito a coroa que me entregas,
a coroa que dobra a minha cabeça para o meu coração.
III
Vi hoje pela primeira vez o meu senhor,
tremendo o reconheci imediatamente.
Agora sinto a sua pesado mão sobre o meu leve braço...
Onde está o meu cantante sorriso virginal,
a minha liberdade de mulher com a cabeça alta?
Agora sinto o seu firme abraço ao meu corpo palpitante,
oiço agora o duro som da realidade
contra os meus frágeis, frágeis sonhos.
IV
Procuravas uma flor
e encontraste um fruto.
Procuravas uma fonte
e encontraste um mar.
Procuravas uma mulher
e encontraste uma alma -
estás decepcionado.
Dikter, 1916
DEUS
Deus é um leito, no qual descansamos estendidos no universo
puros como anjos, respondendo com olhos de um azul de santo à
saudação das estrelas;
deus é uma almofada em que apoiamos a cabeça, Deus é um
suporte para o nosso pé;
deus é uma reserva de força e uma escuridão virginal;
deus é a alma imaculada do inadvertido e o corpo já corrupto
do inimaginável;
deus é a água parada da eternidade;
deus é fecunda semente do nado e o punhado de cinza dos
mundo queimados;
deus é as miríades de insectos e o êxtase das rosas;
deus é um balancé vazio entre o nada e o universo;
deus é um cárcere para as almas livres;
deus é uma harpa para a mão da mais violenta cólera;
deus é o que o anseio pode fazer baixar à terra!
Dikter, 1916
VIERGE MODERNE
Não sou uma mulher. Sou um neutro.
Sou uma criança, um pagem e uma audaz decisão,
sou um raio ridente de um som escarlate...
Sou uma rede para todos os peixes glutões,
sou um brinde em honra de todas as mulheres,
sou um passo para a casualidade e a perdição,
sou um salto na liberdade e no eu...
Sou o murmúrio do sangue no ouvido do homem,
sou o arrepio da alma, nostalgia e negação da carne,
sou um letreiro que anuncia a entrada para novos paraísos.
Sou uma chama, inquisitiva e intrépida,
sou uma água, profundo até aos joelhos mas audaz,
sou fogo e água em união sincera sem condições...
Dikter, 1916
A ÚLTIMA FLOR DO OUTONO
Sou a última flor do outono.
Embalaram-me no berço do verão,
puseram-me de sentinela ao vento do norte,
chamas vermelhas floresceram
na minha face branca.
Sou a última flor do outono.
Sou a mais jovem semente da primavera morta,
é tão fácil ser a última a morrer:
vi o mar tão fabuloso e azul,
ouvi palpitar o coração do verão morto,
o meu cálice contém apenas a semente da morte.
Sou a última flor do outono.
Vi as profundas galáxias do outono,
contemplei a luz de cálidas casas longínquas,
é tão fácil percorrer o mesmo caminho,
vou fechar as portas da morte.
Sou a última flor do outono.
Dikter, 1916
NÓS, AS MULHERES
Nós, as mulheres, estamos muito próximo da obscura terra.
Perguntamos à lâmina o que espera da primavera,
acolhemos nos nossos braços o pinheiro nu,
procuramos no pôr-do-sol signos e conselhos.
Uma vez amei um homem, ele não o acreditava...
Chegou num dia frio com os olhos vazios,
partiu num dia pesado com o esquecimento no rosto.
Se o meu filho não vive, é sua...
Dikter, 1916
AMOR
A minha alma era um vestido azul pálido da cor do céu;
deixei-o sobre uma rocha, na borda do mar,
e nua me aproximei de ti e parecia uma mulher.
E como mulher me sentei à tua mesa
e brindei com um copo de vinho e respirei o aroma das rosas.
Encontraste-me bela e parecida com alguém que tinhas visto
em sonhos,
esqueci tudo, esqueci a minha infância e a minha pátria,
sabia apenas que as tuas carícias me faziam cativa.
E tu, sorrindo, tomas-te um espelho e pediste que me olhasse.
Vi que os meus ombros eram de pó e se desmoronavam,
vi que minha beleza estava doente e só desejava desaparecer.
Oh, abraça-me, abraça-me com tal força que eu não precise de mais nada.
Dikter, 1916
A IRMÃ DA VIDA
A vida a quem mais se parece é à morte, sua irmã.
A morte não é diferente,
podes acaricia-la e tomá-la na mão e pentear os seus cabelos,
ela entregar-te-á uma flor e sorrirá.
Podes poisar o rosto no seu peito
e ouvi-la dizer: é hora de partir.
Ela não te dirá que é outra.
A morte não jaz verde e branca com o rosto no chão
nem de costas sobre uma camilha branca:
a morte passeia-se com faces rosadas e fala com todos.
A morte tem expressões delicadas e faces pias,
sobre o teu coração coloca a sua mão suave.
O que sentiu essa mão suave mão no coração,
a esse não o aquece o sol,
é frio como o gelo e não ama ninguém.
Dikter, 1916
A VIDA
Eu, minha própria prisioneira, digo-vos:
a vida não é a primavera, vestida de veludo verde claro,
nem uma carícia, que raras vezes se recebe,
a vida não é uma decisão de partir
nem dois braços brancos que nos retêm.
A vida é o estreito anel que nos mantém cativos,
o círculo invisível que jamais atravessamos,
a vida é a felicidade próxima que nos passa de longe,
e os mil passos que não nos decidimos a dar.
A vida é alguém desprezar-se a si mesmo
e permanecer imóvel no fundo do poço
e saber que o sol brilha no alto
e que pássaros dourados cruzam voando o ar
e que os dias passam como rápidas flechas.
A vida é agitar a mão num breve adeus e ir dormir a casa...
A vida é um ser estranho para si mesma
e uma nova máscara para qualquer outro que venha.
A vida é manejar imprudentemente a felicidade
e repelir o instante único,
a vida é crer-se frágil e sem atrevimento.
Dikter, 1916
DECISÃO
Sou uma pessoa muito madura,
mas ninguém me conhece.
Os meus amigos têm uma falsa imagem de mim.
Eu sopesei a docilidade nas minhas garras de águia e conheço-a
bem.
Oh, águia. Que doçura no voo das tuas asas!
Vais ficar em silêncio como tudo?
Queres talvez escrever? Mas não escreverás mais.
Cada poema será a perversão de um poema,
não poema, mas garras de águia.
Framtidens skugga, 1920
CATIVEIRO
Cativa, cativa... quero fazer em pedaços as minhas cadeias.
Com lábios dolorosamente raivosos passo pela vida.
Meus abismos, por que pergunto por vós, vós não mereceis
esse nome.
O bronze funde-se com o bronze e faz-se homem,
e o homem tem ferro no seu coração.
Mas acaso o bronze recebeu esse brilho aterrador na seu rosto
do deus dos raios?
Arrasto o meu coração pelo caminho, que o repartam os abutres -
a lua cheia ilumina-me um novo.
Landet som icke ar, 1925
REGRESSO
As árvores da minha infância erguem-se jubilosas à minha volta:
oh, humanidade!
e a erva dá-me as boas-vindas no regresso dos países longínquos.
Agora volto as costas a tudo o que deixei para trás:
o bosque e a praia e o lago serão os meus únicos companheiros.
Agora bebo sabedoria da sumarenta copa dos abetos,
agora bebo verdade do tronco seco da bétula,
agora bebo poder da mais pequena e fina fibra da erva:
um poderoso protector estende-me misericordioso a mão.
Landet som icke ar, 1925
A LUA
Que maravilhoso é todo o morto,
e que indescritível:
uma folha morta e um homem morto
e o disco da lua.
E todas as flores sabem um segredo
e o bosque guarda-o,
e a órbita da lua em torno da terra
é a rota da morte.
E a lua tece a sua maravilhosa teia,
a que as flores amam,
e a lua tece a sua fantástica rede
em torno de tudo o que vive.
E a lâmina da lua sega flores
nas últimas noites do outono,
e todas as flores esperam o beijo da lua
com infinita ânsia.
Landet som icke ar, 1925
O PAÍS QUE NÃO EXISTE
Anseio chegar ao país que não existe,
porque estou cansada de desejar tudo o que não existe.
A lua fala-me do país que não existe
em prateadas runas.
O país onde todos os nossos desejos serão prodigiosamente
satisfeitos,
o país no qual cairão as nossas cadeias,
o país onde refrescaremos o nosso rosto ferido
no orvalho da lua.
A minha vida foi uma ardente ilusão.
Mas uma coisa encontrei e uma coisa logrei -
o caminho para o país que não existe.
No país que não existe
está o meu amado com uma coroa resplandecente.
Quem é o meu amado? A noite é negra
e é tremura a resposta das estrelas.
Quem é o meu amado? Qual o seu nome?
Os céus abobodam-se, mais alto, sempre mais alto,
e um filho do homem afoga-se nas brumas infinitas
e não sabe a resposta.
Mas um filho do homem não é outra coisa senão certeza,
e levanta os seus braços mais acima de que todos os céus.
E ouve-se uma resposta: Eu sou o que tu amas e sempre amarás.
Landet som icke ar, 1925
Versão minha - © Amadeu Baptista
Edith Södergran (1892-1923). Nasceu em São Petersburgo. Viveu grande parte da infância na Carélia, zona de confluência russo-finlandesa. Estudou num colégio alemão e os seus primeiros poemas foram escritos nessa língua. Doente de tuberculose desde os 16 anos, passou vários anos num sanatório suíço e morreu dessa enfermidade em 1923. É considerada como uma das figuras de topo do modernismo finlandês.