Rosa Alice Branco, poeta convidada
TRÊS POEMAS
CARÍCIA DIVINA
Cordeiro do Senhor nunca queiras escravo.
A lua como uma hóstia branca
ilumina o meu corpo a deslizar no teu.
Porque deus é amor e nós fiéis.
Porque nos fez com uma carícia
assim te acaricio e me cobres
de felicidade pela noite dentro.
Bendito seja quem assim ama.
Livrai-nos Senhor de todos os cordeiros
e dai-nos um ao outro cada dia.
SEM LIVRO DE RECLAMAÇÕES
No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.
O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou o correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
Há noites mal dormidas pelas razões erradas.
Esta noite a cama tremeu três vezes. Os teus balbucios
na minha boca. A tua pele húmida. Sou o teu epitáfio?
A família e os demais continuam a acorrer aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.
Qualquer adjectivo apodrece como as flores.
Qualquer frase se decompõe sem sujeito.
Sou apenas uma tatuagem na tua campa.
No princípio era o fim.
VIA SACRA
A semente estende os braços sob a terra
e nasces para a luz, o olhar atento
até aos ramos. Doçura do verde
que o calor matura: é grávida de sede
que concebes fruto.
Imaculado seja o manto
da tua sombra. Que assim seja
enquanto o tronco espessa
ano a ano
contra o calor
contra o frio que te despoja
das vestes
e te fustiga nua.
Tremes na ignorância
de que o teu corpo é a tua e nossa cruz
destinada antes de sempre
para todo o sempre.
Quando o machado desfere o primeiro golpe
olhas ainda a casa plantada até ao tecto
a que deste sombra.
Vês o fogo aceso,
a mesa posta,
o vermelho do vinho em cada copo.
Tu, nascida da semente sem pecado,
alheia ao sacrifício,
inocente de todos os males,
temente ao sol e à chuva,
ao capricho do vento,
a tua seiva goteja para o chão
e no padecimento da carne murmuras:
pai, afasta de mim este cálice.
Árvore santa dolorosa
golpe a golpe se esvai o teu corpo,
a seiva alastra pelo solo
e gritas angustiada: Pai,
porque me abandonaste?
Mas ninguém responde,
ninguém te ressuscita.
Tão pouco sabes que a alma é um luxo humano,
que não és tu sentada à direita
de deus pai e que o teu reino já teve fim.
Como vês, a crença Nele é fervorosa e grande:
a medida exacta da nossa miséria.
Rosa Alice Branco (PHD em Filosofia Contemporânea) tem livros de poemas publicados no Brasil, Suíça, Luxemburgo, Canadá, Tunísia, Espanha, Venezuela (obra reunida),Córsega, Itália e Alemanha. Em Portugal, publicou Soletrar o Dia – Obra Poética (1988-2002), pelas Quasi, em 2002, que integra o homónimo inédito e os livros anteriores. Além de outros títulos, publica em 2009 O Mundo não acaba no frio dos teus ossos, pelas Quasi edições e ganha o "Premio de Poesía Espiral Maior", com o livro Gado do Senhor que saiu em Espanha (Galiza), na língua original, ainda em 2009. Este mesmo livro sai pelas ed. & ETC, em 2011. Além de artigos e poemas em várias línguas, publicou livros de ensaio: A percepção visual em Berkeley e O que falta ao mundo para ser quadro, tendo saído em 2009, no Brasil, A condição secreta do visível – ensaio sobre a percepção na natureza e nas artes.
Fotos: © de Amadeu Baptista; Poemas: © Rosa Alice Branco (in Gado do Senhor, Lisboa, & Etc, 2011
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