sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Sistina, Juízo Final

Poema lido ontem, na sessão de entrega do Prémio Literário "António Cabral",
que ocorreu ontem no Auditório da Biblioteca Municipal Dr. Júlio Teixeira, em Vila Real:


JUÍZO FINAL

Eu entendo que a arte é um refinamento do choque,
vai-se a ver e tudo está no colapso da infância, esse sulco 
onde o corpo se fere pela primeira vez e os olhos,
restituídos à dimensão do escuro, navegam.

A infância é o fulcro de todas as artes, sejam as do ferro,
das cores, ou as do estanho, e persegui-las é interrogar
as nuvens ou o fluxo que se distende na música.

A minha boca amplia-se nesse processo rupestre de sedimentações
e sinto em mim os pigmentos necessários para compor
a intrincada rede de sortilégios onde o que fica dito
iguala o por dizer, em brancos e cádmios a que o fogo acosta,
reverberando para o devir e a recordação.

A minha arte conduz-me à palavra e faz de mim um homem
de alentos brutais: e ardo, e ardo –  não por cega arrogância,
ou escolha, mas por sede, por desabalada sede.

Pode Deus condenar-me por luxúria,
mas a minha sordidez e faltas são de outra acareação
e juízo –  trate-se de ingenuidade ou do teor
de raiva que me descomanda,
pago o preço e lacero os dedos na trama do destino.

Uma sílaba é uma emboscada, pertença ou não pertença à suavidade,
seja ou não seja a onda enigmática de um mar amorável.

Dessa certeza íntima recolho o assombroso e procedo ao regresso
do que já fui em menino, ao que vivi.

A essa pedreira abrupta confluem todas as preposições do meu código,
junto os lábios e sopro para ver Cristo na cruz e Maria Madalena
a afeiçoar-lhes os pés, a figueira maldita entre todas as árvores,
a sombra imensa dos meus apóstolos ancestrais, que me perseguem
e incitam à desfragmentação das coisas e à sua violação, acompanhados
pela chusma de antepassados que do fundo da sombra, ou dos sonhos,
contra mim vociferam e incitam ao ataque e ao talhe.

Escrever é intuir o pânico sobre a realidade,
ainda que esse pânico seja manso como a loucura da ninfa
que, oculta na ínsua, mudou em canavial para escapar
à sedução do jogo.

Eu vou a esse jogo, quero essa ninfa, tremo
velozmente em todas as incertezas e amplio a escultura
na prossecução de um lastro conclusivo sobre o absoluto.

Por puro desafio transfiguro a minha presença em seres
abomináveis, tiro demónios do corpo, cometo crimes horrendos
e instituo a vingança a que nada escapa pelo frenesim evidente
de uma pedra não poder escapar a ser pedra.

Crio Deus à minha imagem e semelhança e doto-o
de castigos exemplares e perplexidades blasfemas.

A palavra, o eterno veneno, é o bálsamo onde todos os receios se dominam
para que se intensifique o deslumbramento.

E aí, póstuma a si mesma, a luz azul do traço recria
a criação do universo com faíscas e áscuas de contentamento,
embora nada substitua o caos ou doa mais que saber
a maceração do barro,
a única e irrevogável bênção sobre a terra.

A arte é uma ambivalência abalroada, de um lado ficamos nós
e as marcas do sofrimento e do júbilo, do outro a presunção
da semelhança e da transposição, o rio que se amotina em rio,
a montanha que se transfigura em montanha, a barca de pedra
que flutua no largo oceano ou no pano vermelho que a noite
bordou: eis onde dormimos, a divindade e nós.

A infância atinge-nos com visões magníficas, terríveis, solta-nos
pelas ruas e praças como tigres de amianto, ávidos do fogo
que faz rebentar em lágrimas a madeira, enquanto a cogitação labora
o discricionário e o sonho se expande em constelações,
sem que nos seja consentido saber o suficiente
sobre esse hemisfério, essa corrupção, tal poder corrosivo.

Ardo, pela rasura da arte, e em densas caligrafias ataco o refrigério
e construo talhos e maldições para que todo o lirismo
reflua dilacerado pela vertigem excruciante e iniciática.

Os joelhos justapõem-se na cruz, a água e o vinagre
tingem a tela imorredoira, cai o fel na argila, ocre e negra,
e vejo em cima da cabeça todo o negrume de que sou capaz: faço
o que faço por redenção e amor, digo o que digo porque possuo
a crença inaudita de quem inscreveu nas dobras do lençol
a danação e a mágoa e sei, assim, como todo o apocalíptico é libertador.

 Minha é a música, a pintura, a escultura.

Minha é a dança e a nudez, meus são os acessórios da genialidade e do intenso,
minha é a escrita e a imagem – e sei que é do choque que tudo advém,
 hostil e profícuo, adversário e útil, conjurado e santo.

Não há como não arrastar pelo chão as incertezas do corpo, não há
como não rejubilar ao bater a cabeça nas pedras, não há como não ser
autêntico e arrancar os cabelos para ampliar na arte o mal que nos fizeram,
o mal que já fizemos, o bem que somos e acreditamos ser.

Vai-se a ver e o choque é uma queda e outra – e outra, ainda.

Mais do que metáfora, a queda arrasa, impõe-se ao temperamento,
fulmina.

Mais do que a morte, mais do que a mulher indizível,
mais do que a liturgia: choque e choque –  choque,
golpe a tocar a arte para a frente, sempre para a frente,
a prender com arames a geometria e o outono, a chuva e a fantasia,
a expandir na treva a possibilidade de treva, uma e outra vez.

Estive na infância como vítima e predador,
arrasei edifícios e dei-me ao assassínio, jurei
falso e cuspi esconjuros: quanto mais tenra a idade do suplício
mais perversa é a inocência, sendo que toda a inocência é perversa
porque jamais hesita sobre o deserto oculto, qualquer deserto.

A palavra engasta-se na criação perfeita e a crença
é o bem da imperfeição, que tortura e salva.

Tudo é rememoração: há casas inúmeras em que a solidão supera
a audácia dos golpes, mas parar é morrer, e de um tropel inequívoco
se faz a vida, com legiões degredadas e combates sangrentos
na extensão do afresco a refinarem em sangue o sentido da busca
e o ardil – imenso –  que nos sitia os olhos, as mãos, o sentimento.

Em volta despontam gritos que nos cosem o corpo
ao silêncio ilimitado das coisas, como o cântico
que alastra na multidão e sela uma solidão indefensável
e nos exaure a cada instante: porque nada mais dói
que nos sabermos a árvore que se prontifica para o abate.

O impacto do machado amplia os rumores que o vento conduz,
estrondos inaudíveis alastram na ausência que a floresta reverdece.

A arte é esquecimento atroz e nada salva a luz
quando o choque chega de outra intensidade e grandeza,
ou as mãos soletram a epifania das coisas:
a troca do prazer pela dor e a dor pelo prazer é infinita.

Vai-se a ver e o tempo é indócil, dói nos olhos como ameaça
e sequestro, mas o espanto subsiste no afã de criar,
arco e roda de oleiro, forja e excomunhão, harpa
e espátula a apurar a infernal ordem do poema
em todos os tons corrosivos, todos os sons que arpoam
num mar inédito a baleia do desejo.

Vai-se a ver e o sangue cai em corda como a chuva
numa desinência tropical.

A cama inunda-se desse nítido torpor, queimadura lenta, eficaz:
do homicídio ao acinte tudo é figura luminosa, tudo
surge de onde jamais esteve, tudo se cria e transforma,
tudo rebenta – e a frágil flor no desígnio da árvore
assegura o diamante e o açougue,
a primazia da morte, a regeneração, o fascínio constante.

Entendo a arte como um refinamento do choque porque o sangue
transborda e ao longo do caminho a sombra trespassa finalmente
a ânsia sigilosa.

Vai-se a ver e o ímpeto amotina os sentidos,
a memória: o corpo afligido, freme, o corpo sucumbido
pelo choque, cai para se erguer e voltar a cair – eis o abismo
em que batem os lábios e a língua reflui, definitiva e árdua.

Eis o abismo em que a cabeça progride e o coração se arrebata
e engendra milagres.

Eis o abismo em que a subversão acomete
e resgata o instinto, a procura, a voragem.

Eis o abismo brilhante, cortante, turbulento, uivante,
onde se sobrepõem os choques, vários, múltiplos, devastadores.

Digo o que digo neste silêncio cruel e sei que pago
por transgredir no espírito o que se alimenta de alma.

A noite adensa-se em colunas e aras, os corvos clamam,
buracos negros irrompem como girassóis gigantes
cuja rotação faz o chão tremer, numa dança sem fim, grácil e obscena,
despautério que desencadeia a graça e onde a graça é açoite, juízo,
espada, coroa de espinhos.

O choque arrasa, constrói,
vem ao peito como arremesso, seixo que devora a fonte
sequiosa, divindade excelsa e monstro terrífico, inefável.

Pelo assombro, conheço o mandamento. E ressuscito.


Poema: © de Amadeu Baptista


Juízo Final, afresco do  Michelangelo Buonarroti, 13,7 m x 12, 2 m, parede do altar da Capela Sistina.

4 comentários:

  1. Nem que fosse só por este poema, ficaram a saber que o prémio só poderia ser para si. Abraço.

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  2. "...todo o apocalíptico é libertador."
    Terrível e maravilhoso... como a própria pintura da Capela Sistina.
    Parabéns pelo merecido prémio. Beijo. Isabel Alves

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  3. Um grande talento merece um grande premio.
    Parabéns!!!!!!!!!!!!!

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  4. meu caro Amadeu, parabéns e coloquei este belíssimo poema no meu mural, alertando que o seu deve ser visitado assiduamente por quem gosta de poesia
    Manuel Augusto Araújo

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