Poema lido ontem, na sessão de entrega do Prémio Literário "António Cabral",
que ocorreu ontem no Auditório da Biblioteca Municipal Dr. Júlio Teixeira, em Vila Real:
JUÍZO FINAL
Eu entendo que a arte é um refinamento do choque,
vai-se a ver e tudo está no colapso da infância, esse sulco
onde o corpo se fere pela primeira vez e os olhos,
restituídos à dimensão do escuro, navegam.
A infância é o fulcro de todas as artes, sejam as do ferro,
das cores, ou as do estanho, e persegui-las é interrogar
as nuvens ou o fluxo que se distende na música.
A minha boca amplia-se nesse processo rupestre de sedimentações
e sinto em mim os pigmentos necessários para compor
a intrincada rede de sortilégios onde o que fica dito
iguala o por dizer, em brancos e cádmios a que o fogo acosta,
reverberando para o devir e a recordação.
A minha arte conduz-me à palavra e faz de mim um homem
de alentos brutais: e ardo, e ardo – não por cega arrogância,
ou escolha, mas por sede, por desabalada sede.
Pode Deus condenar-me por luxúria,
mas a minha sordidez e faltas são de outra acareação
e juízo – trate-se de ingenuidade ou do teor
de raiva que me descomanda,
pago o preço e lacero os dedos na trama do destino.
Uma sílaba é uma emboscada, pertença ou não pertença à suavidade,
seja ou não seja a onda enigmática de um mar amorável.
Dessa certeza íntima recolho o assombroso e procedo ao regresso
do que já fui em menino, ao que vivi.
A essa pedreira abrupta confluem todas as preposições do meu código,
junto os lábios e sopro para ver Cristo na cruz e Maria Madalena
a afeiçoar-lhes os pés, a figueira maldita entre todas as árvores,
a sombra imensa dos meus apóstolos ancestrais, que me perseguem
e incitam à desfragmentação das coisas e à sua violação, acompanhados
pela chusma de antepassados que do fundo da sombra, ou dos sonhos,
contra mim vociferam e incitam ao ataque e ao talhe.
Escrever é intuir o pânico sobre a realidade,
ainda que esse pânico seja manso como a loucura da ninfa
que, oculta na ínsua, mudou em canavial para escapar
à sedução do jogo.
Eu vou a esse jogo, quero essa ninfa, tremo
velozmente em todas as incertezas e amplio a escultura
na prossecução de um lastro conclusivo sobre o absoluto.
Por puro desafio transfiguro a minha presença em seres
abomináveis, tiro demónios do corpo, cometo crimes horrendos
e instituo a vingança a que nada escapa pelo frenesim evidente
de uma pedra não poder escapar a ser pedra.
Crio Deus à minha imagem e semelhança e doto-o
de castigos exemplares e perplexidades blasfemas.
A palavra, o eterno veneno, é o bálsamo onde todos os receios se dominam
para que se intensifique o deslumbramento.
E aí, póstuma a si mesma, a luz azul do traço recria
a criação do universo com faíscas e áscuas de contentamento,
embora nada substitua o caos ou doa mais que saber
a maceração do barro,
a única e irrevogável bênção sobre a terra.
A arte é uma ambivalência abalroada, de um lado ficamos nós
e as marcas do sofrimento e do júbilo, do outro a presunção
da semelhança e da transposição, o rio que se amotina em rio,
a montanha que se transfigura em montanha, a barca de pedra
que flutua no largo oceano ou no pano vermelho que a noite
bordou: eis onde dormimos, a divindade e nós.
A infância atinge-nos com visões magníficas, terríveis, solta-nos
pelas ruas e praças como tigres de amianto, ávidos do fogo
que faz rebentar em lágrimas a madeira, enquanto a cogitação labora
o discricionário e o sonho se expande em constelações,
sem que nos seja consentido saber o suficiente
sobre esse hemisfério, essa corrupção, tal poder corrosivo.
Ardo, pela rasura da arte, e em densas caligrafias ataco o refrigério
e construo talhos e maldições para que todo o lirismo
reflua dilacerado pela vertigem excruciante e iniciática.
Os joelhos justapõem-se na cruz, a água e o vinagre
tingem a tela imorredoira, cai o fel na argila, ocre e negra,
e vejo em cima da cabeça todo o negrume de que sou capaz: faço
o que faço por redenção e amor, digo o que digo porque possuo
a crença inaudita de quem inscreveu nas dobras do lençol
a danação e a mágoa e sei, assim, como todo o apocalíptico é libertador.
Minha é a música, a pintura, a escultura.
Minha é a dança e a nudez, meus são os acessórios da genialidade e do intenso,
minha é a escrita e a imagem – e sei que é do choque que tudo advém,
hostil e profícuo, adversário e útil, conjurado e santo.
Não há como não arrastar pelo chão as incertezas do corpo, não há
como não rejubilar ao bater a cabeça nas pedras, não há como não ser
autêntico e arrancar os cabelos para ampliar na arte o mal que nos fizeram,
o mal que já fizemos, o bem que somos e acreditamos ser.
Vai-se a ver e o choque é uma queda e outra – e outra, ainda.
Mais do que metáfora, a queda arrasa, impõe-se ao temperamento,
fulmina.
Mais do que a morte, mais do que a mulher indizível,
mais do que a liturgia: choque e choque – choque,
golpe a tocar a arte para a frente, sempre para a frente,
a prender com arames a geometria e o outono, a chuva e a fantasia,
a expandir na treva a possibilidade de treva, uma e outra vez.
Estive na infância como vítima e predador,
arrasei edifícios e dei-me ao assassínio, jurei
falso e cuspi esconjuros: quanto mais tenra a idade do suplício
mais perversa é a inocência, sendo que toda a inocência é perversa
porque jamais hesita sobre o deserto oculto, qualquer deserto.
A palavra engasta-se na criação perfeita e a crença
é o bem da imperfeição, que tortura e salva.
Tudo é rememoração: há casas inúmeras em que a solidão supera
a audácia dos golpes, mas parar é morrer, e de um tropel inequívoco
se faz a vida, com legiões degredadas e combates sangrentos
na extensão do afresco a refinarem em sangue o sentido da busca
e o ardil – imenso – que nos sitia os olhos, as mãos, o sentimento.
Em volta despontam gritos que nos cosem o corpo
ao silêncio ilimitado das coisas, como o cântico
que alastra na multidão e sela uma solidão indefensável
e nos exaure a cada instante: porque nada mais dói
que nos sabermos a árvore que se prontifica para o abate.
O impacto do machado amplia os rumores que o vento conduz,
estrondos inaudíveis alastram na ausência que a floresta reverdece.
A arte é esquecimento atroz e nada salva a luz
quando o choque chega de outra intensidade e grandeza,
ou as mãos soletram a epifania das coisas:
a troca do prazer pela dor e a dor pelo prazer é infinita.
Vai-se a ver e o tempo é indócil, dói nos olhos como ameaça
e sequestro, mas o espanto subsiste no afã de criar,
arco e roda de oleiro, forja e excomunhão, harpa
e espátula a apurar a infernal ordem do poema
em todos os tons corrosivos, todos os sons que arpoam
num mar inédito a baleia do desejo.
Vai-se a ver e o sangue cai em corda como a chuva
numa desinência tropical.
A cama inunda-se desse nítido torpor, queimadura lenta, eficaz:
do homicídio ao acinte tudo é figura luminosa, tudo
surge de onde jamais esteve, tudo se cria e transforma,
tudo rebenta – e a frágil flor no desígnio da árvore
assegura o diamante e o açougue,
a primazia da morte, a regeneração, o fascínio constante.
Entendo a arte como um refinamento do choque porque o sangue
transborda e ao longo do caminho a sombra trespassa finalmente
a ânsia sigilosa.
Vai-se a ver e o ímpeto amotina os sentidos,
a memória: o corpo afligido, freme, o corpo sucumbido
pelo choque, cai para se erguer e voltar a cair – eis o abismo
em que batem os lábios e a língua reflui, definitiva e árdua.
Eis o abismo em que a cabeça progride e o coração se arrebata
e engendra milagres.
Eis o abismo em que a subversão acomete
e resgata o instinto, a procura, a voragem.
Eis o abismo brilhante, cortante, turbulento, uivante,
onde se sobrepõem os choques, vários, múltiplos, devastadores.
Digo o que digo neste silêncio cruel e sei que pago
por transgredir no espírito o que se alimenta de alma.
A noite adensa-se em colunas e aras, os corvos clamam,
buracos negros irrompem como girassóis gigantes
cuja rotação faz o chão tremer, numa dança sem fim, grácil e obscena,
despautério que desencadeia a graça e onde a graça é açoite, juízo,
espada, coroa de espinhos.
O choque arrasa, constrói,
vem ao peito como arremesso, seixo que devora a fonte
sequiosa, divindade excelsa e monstro terrífico, inefável.
Pelo assombro, conheço o mandamento. E ressuscito.
Poema: © de Amadeu Baptista
Juízo Final, afresco do Michelangelo Buonarroti, 13,7 m x 12, 2 m, parede do altar da Capela Sistina.
Nem que fosse só por este poema, ficaram a saber que o prémio só poderia ser para si. Abraço.
ResponderEliminar"...todo o apocalíptico é libertador."
ResponderEliminarTerrível e maravilhoso... como a própria pintura da Capela Sistina.
Parabéns pelo merecido prémio. Beijo. Isabel Alves
Um grande talento merece um grande premio.
ResponderEliminarParabéns!!!!!!!!!!!!!
meu caro Amadeu, parabéns e coloquei este belíssimo poema no meu mural, alertando que o seu deve ser visitado assiduamente por quem gosta de poesia
ResponderEliminarManuel Augusto Araújo