ARQUITECTURA
Estas paredes levantam-se para o céu
para que a casa de Deus tenha as medidas
da Sua omnipotência
e seja o templo alicerçado nas alturas,
entre as nuvens e o silêncio,
entre a pálpebra azul do firmamento,
e um rarefeito cômputo de passos,
porventura de homens, porventura
do que do divino aos homens
se aproxima, e os cinge
à Sua imagem e semelhança,
haja ou não haja remissão ou indulgência.
O céu é indiviso, e indivisas as luzes,
os seus enigmas, a sua arquitectura.
E monolíticos são os arcos que o suportam,
as suas sombras e anjos,
o seu farfalhar magnífico e aterrador,
sob o qual tudo arde, de repente,
sobrevindo ao infinito da casa,
na sempre eterna solidão salvífica
o princípio de tudo e o seu fim.
É esta casa ampla, como é amplo
Deus, e omnipotente, tal como serão
os homens que O olham desde o chão,
de súbito altíssimos, mas prenhes
de humildade e indefesos, inacabados,
assim que a Sua Voz lhes sulca
o coração, ou Deus prolonga o silêncio
no Seu verbo, que os calcina.
Felizes os cativos, felizes
os que se devotam aos rumores do templo,
felizes os que põem as mãos na sua ara,
os que confrontam a matéria
e pelo sonho aguardam, os que fendem
a terra e colocam pedras nos Seus furos,
e amassam nas mãos o Seu cimento,
a Sua argila cálida, a Sua água ardente,
o Seu fermento. Felizes os que levantam
andaimes nas paredes, os que usam
a roldana, a grua, o cabrestante, felizes
os que suam, os que usam vigas de cedro
na casa do Senhor, e Lhe propõem
um tecto e uma cama, e lhe dão uma porta
para que nunca parta.
É esta casa alta porque ao cimo
se constroem as casas onde Deus mora,
onde vivem os vivos que imploram
que ao seu templo se una outro templo
mais afeito à claridade que aos enigmas,
fulgente, porque nele embebe Deus
os homens em sabedoria, enquanto
ao seu redor as calamidades grassam
e os profetas erguem ao sol as suas mãos
secas como palha e escutam trombetas
no deserto, sangrando dos ouvidos,
e balbuciam a vinda do que há-de vir
e em Jerusalém, pressagiam, será o templo
caído e levantado num pestanejar.
Felizes os que sabem escutar os rumores
do templo, os que sobem escadas,
os que gizam esboços, os que preparam
as tábuas, e os que talham arestas,
os que abrem compassos e adestram réguas,
os que moldam o ferro, os que manejam
garlopas, e goivas, e espátulas,
os que afinam o gesso, os que limpam
as pedras, e os que carregam baldes,
e carros, e mosaicos,
e blocos de mármore, e gamelas
de reboco, e os que afagam soalhos,
e aplicam ladrilhos, e os que apertam os tornos,
os que puxam o fogo e instalam as águas,
os que estabelecem as cordas
e, no estaleiro, dormem ao relento,
os que debuxam, os que montam,
os que revestem, os que limpam,
os que vazam, os que cozinham, os que rebitam,
os que laminam, os que esculpem,
e os que rezam no fim, pela obra feita.
É esta casa o esplendor de Deus, lugar
de guardar as arcas e os mistérios,
e de recolher os homens
e os clarões que o escuro desvanece,
a casa onde as sombras iluminam
por intervenção divina,
e se abriga a paz que há-de reinar para todo o sempre,
porque é próprio da paz poder reinar,
mesmo que Sisto IV no templo se reveja
como Deus proibiu, tal como a David
proibiu Deus de construir na eira, porque
era esse um lugar sangrento
e só Deus sabe o preço que há no sangue,
o tanto que o sangue subverte,
o nosso sangue,
o sangue das ovelhas e dos pastores,
o sangue dos canteiros e dos pintores,
o sangue dos que sofrem e dos pacíficos.
Ah, felizes os que sabem escutar os rumores
do templo, sob a espessa pálpebra do firmamento.
Poema: © de Amadeu Baptista
Poema de abertura do livro ‘Sistina’, a que foi atribuído o Prémio Literário “António Cabral”.
A sessão de entrega deste prémio terá lugar no dia 29 de Setembro, pelas 21h00, no Auditório da Biblioteca Municipal Dr. Júlio Teixeira, em Vila Real.
Sem comentários:
Enviar um comentário