domingo, 11 de setembro de 2011

Vida adulta / 17

MIL NOVECENTOS E OITENTA E NOVE

A balaustrada serve para olharmos para dentro.
Quanto mais olhamos para dentro mais é possível ver
a azáfama do mar nos élitros do vidro, os seus galões
suavemente ameaçados. Olhando mais, um passo
noutro passo, vislumbra-se o silêncio,
os vasos de flores que a hierarquia das coisas
permite observar, carvão, sandálias, lápis.
A sensação que fica é a de um rosto
que a si mesmo exorcisma, acrescentando
ao lume lume, água aos sedimentos. Quem quiser
pode vibrar nesse propósito de sal,
caso não esteja fechada a persiana,
embaciado o diálogo interior pelo vento recorrente.
Depois, é só ouvir, o erotismo conclama as luzes,
abre-se a cama, a vulva pulsa, o orgasmo
desencadeia na carne agitações, montanhas.
Sendo possível ver, sendo possível
de longe observar a derrapagem,
poder-se-á, então, recomeçar a morte, adivinhar
os negros filamentos da abordagem
que as mãos, incendiadas, encetaram
quando a sanguínea brotou à flor da pele
e a dimensão exacta do retrato
foi a evasão possível nos cálidos pulmões
que a varanda permitiu, por ser tão ampla a noite
e fino o ar em trânsito nas cortinas.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

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