António Ferra, poeta convidado
TRÊS POEMAS
Canalização
Domino a infiltração que me perturba,
imagino o prazer da cama seca à espera de
algum canalizador a olhar obra futura com desdém,
há fuga de água, há ar a mais, é preciso calafetar a alma,
não vá sair de chofre o sopro que a sustem.
Tento consertar os canos,
esgotos de mim mesmo propagados pela casa,
o resto pouco importa, é o resultado dos anos.
Que é isso do poema
feito no jogo da palavra barroca,
cultismo de circunstância sem lugar para
infiltrações ou para qualquer ratazana saída da toca
obstruindo a casa onde respiro e esqueço detritos
num banho de alfazema?
Não há canalizador que me valha,
estão todos ocupados com serviços importantes, urgentes até,
e eu que me arranje,
que escreva metáforas aos canos apodrecidos pelo tempo
onde sempre correu água turva por onde se esgueirou
o que sobra de mim, ao fim do dia,
não toda essa merda conspurcando enunciados, não,
antes aquela inventada para dar lugar a outra, que sobrou
por contraste, sacrifício, teimosia.
Como era bom agora uma esplanada junto ao mar,
ouvir outra água sem saber de nada, esquecer a tubagem,
tomar batidos de leite e nata com morango, sorver o café,
percorrer uma gaivota na praia com o olhar, sentir uma aragem,
pôr fim à porcaria dos poemas encharcados de quotidiano
até cheirar mal, e depois dizer “então como é?
Que chatice! Que é que eu vou fazer,
quem é que me vem consertar o raio do cano?”
Está roto e não há quem o remende, quem o troque por outro
asséptico e novo para durar a eternidade, sem pruridos,
como se os canos não se gastassem, e as juntas,
as ligações estranhas que fazemos sem saber porquê,
sem saber que somos infiltrados e à nascença entupidos,
até dizer basta!, quero respirar, quero escrever o que me vem
à cabeça com todos os sentidos,
depois logo se vê.
(in A Palavra Passe, 2006)
Tragédia Urbana
Vede como o infortúnio se faz coro e no lamento se prolonga!
Assim é a tragédia que me toca o corpo manchado de sangue,
como se eu fora um atrida, um labdácio de bairro, aqui no Lumiar,
onde espreito deste anfiteatro, à varanda, um actor arrastando a máscara
no regresso ao fim da tarde, sem saber a dimensão do seu coturno,
mas provavelmente baixo, sob longas vestes de pronto a vestir
o proscénio de um vastíssimo teatro periférico,
ai de ti, se desprezas neste tempo o corifeu!
não te prendas ao destino,
a vida que traçaste, só por isso, aconteceu
Em Édipo me ceguei, tão custoso foi de ver esta luz intermitente
do néon, e caminhei tacteando as árvores plantadas pela junta
de freguesia em véspera de eleições, sem que Antígona me guiasse
por esta alameda das linhas de torres enormes,
ai de mim se desprezo neste tempo o mensageiro!
se não fujo ao destino,
é porque a vida que tracei foi por inteiro
Nenhum oráculo me disse que o sonho desta pólis
se desfaz em fumo poluente e, por mais bancos que se abram
nas esquinas, pagarei em vida e não em dracmas o preço
de um trajecto simulado na rotina, de mãos nos bolsos,
à espera que o autocarro dê a volta pela ágora vazia,
ai de ti se não entras neste drama
e desprezas as leis desta cidade
no regresso ao fim da tarde que te trama.
(inédito)
A poesia é caríssima
A poesia é caríssima, custa muito aos pedintes,
a mendigar junto ao semáforo, traje a rigor,
por dois livros de versos ganham vintes:
«- Ainda ontem tomei um copo de leite
e uma bola de Berlim, qual Belarmino na ressaca,
e não soquei ninguém neste boxe da palavra,
nesta queda no tapete a preto e branco»
Tanto verso, às vezes curto, a euro e meio,
tanta sílaba dividida pelos cêntimos!
Vendem os poetas versos livres
ou as métricas saídas do paleio
onde se finge a dor que não se sente,
se fere a angústia e fecha o cerco ao sentimento
de Pessoas ao dispor de toda a gente
(e digo isto porque tenho lido coisas!...
ai, meu Deus, que parecem ser mesmo verdade,
se calhar um poeta nunca mente.)
E a cruz arrastada do leitor que penetra na leitura
interrompendo a noite, ouvindo Debussy,
decifrando versos durante as horas lisas,
folheando rimas, a surpresa dos conceitos,
sem saber que aquelas letras feitas de água
dão muita despesa, uma grande trabalheira,
e muito estudo, enquanto a noite dura?
Tantos anos de palavras e de jogos,
tantas luzes sentadas na cadeira, na ferrugem das manhãs,
no comércio do mote que os guia!
E se a sátira se estende na lombada do livro curto,
ou da antologia volumosa, (oh, senhores, de meia vida?!)
juntai metáforas, lede Camões que é bom e é barato,
ride-vos d’ O’Neill que não perdoa graças, sofre a sorrir.
Mas, por quem sois, se arrumais carros nas pracetas,
não entreis na versalhada ao desbarato, é tempo de ir
comprar poemas avulso para os bolsos.
No entanto, comprai poucos,
podeis crer que as letras não são tretas
andamos todos é a ler-nos uns aos outros.
(in Livro de Reclamações, 2010)
Foto: © de Amadeu Baptista
António Ferra nasceu no Porto, em 1947. As suas primeiras publicações situam-se nas áreas da pedagogia e da literatura para crianças, especialmente teatro, em que é autor premiado. No campo da ficção escreveu Crónica dos Novos Feitos da Guiné e narrativas curtas, como O Vermelho e o Negro, Olhar o Silêncio, Água e Fogo e Silêncios Comprados. Em 2002 publicou o seu primeiro livro de Poesia, Com a Cidade no Corpo, e em 2006, A Palavra Passe. Em 2009, experimentou a prosa poética com A Estação Suspensa e em 2011, Marias Pardas. Mantém, desde sempre actividade como artista plástico, em articulação possível com o trabalho de escrita.
Tive a sensação de conhecer o António Ferra... e sei que não. Curioso.
ResponderEliminarObrigada!
No Facebook a m/página é Marques Irene.
ResponderEliminarGostaria de saber se permite que insira um
poema seu no meu blogue http://sinfoniaesol.
wordpress.com com os devidos créditos.Tinha
muito gosto. Um abraço/Irene