MIL NOVECENTOS E NOVENTA E TRÊS
Verdadeiro como uma serra
de recorte o estupor transita
pelo coração.
Fico na esquina
a ver passar o trânsito
ou vou a casa, para ver sorrir
os mortos na varanda.
À saída,
começa a adultez, com passagens
para o infinito e a imortalidade,
a desarrumação forrada
a luas fluorescentes e enigmas
inimagináveis.
Salva a ira,
a irritação na pele opõe-se
ao espírito,
premedita e age sob a acção
de um vento irrequieto,
esquizofrénico.
E a serra,
a serra de recorte omnipresente
e ágil, nada recupera.
Engole-me a seco,
para que possa ganir mais à vontade,
cão de avinagrada língua.
Se quero acreditar, não quero.
A ponte em seu balanço vespertino
em vão aguarda esse rodado,
a braçada em que a surpresa
se escondeu.
E o amor, o amor,
é como a igreja vazia nessa hora
em que o milagre não vem
e a assembleia desacredita em Deus.
Depois, a noite,
inúmera e vaga,
inunda tudo,
a cabeça inerte na almofada branca
ressuma pouco calor,
parcas navegações.
Se houve um sonho, a morte o levará
e não vai adiantar procurá-lo
atrás da máquina de lavar,
caído, como um trapo
ou o frasco da lixívia,
já vazio.
( in Açogue, Corunha, Espiral Maior, 2009)
Foto: © de Amadeu Baptista
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