CARAVAGGIO: A DEGOLAÇÃO DE S. JOÃO BAPTISTA
(para Rui Almeida)
Retenho do quadro uma mancha azul, opaca,
onde o silêncio paira como um agoiro de luz
– em tudo há um silêncio assim,
mas é deste rastro de ínvia escuridão
que o rescaldo do mundo se impregna,
como uma dor interminável,
um grito que tudo obscurece,
para que a cegueira dos homens nunca se interrompa.
Não é uma questão de saber onde está a mágoa,
ou se a mágoa existe.
Sempre se soube de que enigmas a tristeza se reveste
e como, pelos séculos, tudo é perturbação e desagravo,
e como não há bênção pelo esforço, e nada irá render-nos
pelo que, pelo horror e o enigma, distende as suas garras
em direcção aos homens.
Atrás há outra escuridão: preenche o quadro
como uma admoestação
para que o encontro e o desencontro dos olhares
proclamem no silêncio
o fragor da tristeza no rosto de quem olha
e se não pode redimir por tanta angústia.
Há, ainda, uma parede ocre,
travejamentos negros,
e dois vultos que perscrutam, sem surpresa,
o que se passa à sua esquerda,
numa atitude grave e carregada, com as mãos
presas às grades da janela,
ou nelas se sustendo.
De onde chegaram, ainda há muito pouco,
havia luz e ar,
mas o que vêem é de um domínio atroz
e insustentável,
de modo que respiram entrecortadamente,
como se um punhal lhes rasgasse a carne
e Deus não fosse o criador do mundo.
Estão, assim, parados porque sabem
que é pelo sangue que se lava o sangue
e é injusta a terra, e débil
para o poder de um rei,
a sua amante, e a miríade sumptuária de guerreiros
que os serve.
Estão à esquerda as cinco figuras que modulam o quadro
e explicam como a nossa humanidade se ressente
do que pesa:
em cada coisa há sempre um atropelo que se ergue
sobre a transcendência para que a cegueira
mais se expanda em nós
– e nós, sempre mais cegos, suportemos
qualquer atrocidade sem que a asfixia
nos esmague o crânio,
o coração.
Eis que o homem do centro do conjunto
ordena a que o abate tenha início:
o braço distendido e a tensão do corpo
demonstram como é altivez
a cobardia,
e o dedo indicador, que aponta a vítima,
atesta, decisivamente,
como pode ser precário o arbítrio de quem
só pode obedecer.
Enverga um casaco verde
sobre uma camisa clara, sem botões,
sendo que, pelas várias chaves que carrega na cintura,
se pressinta que se presta ao zelo de estabelecer a ordem
do que, nenhuma vez, terá ordenação:
era ainda manhã e já o indispunham os escravos,
e não estava quente o leite,
e azedava o vinho nos tonéis,
e descobria insuportável a algazarra na cozinha,
e os ratos saqueavam a despensa,
e não havia azeite para as lâmpadas,
e o rei não se cansava de o chamar,
a doerem-lhe as costas, os rins e a cabeça.
À esquerda deste homem está uma mulher velha
– dela se nota o pânico que antecipa pela degolação:
tapa os ouvidos com as mãos,
não para deixar de ouvir,
mas para não ver o que na extensão do silêncio fere os olhos.
Talvez pelo que fez,
talvez pelo que não fez,
esta mulher tem medo do que assiste,
sendo que há muito não sabe de si mesma:
ia na estrada, e subia a estrada,
e o seu cansaço era infinito,
e se voltava atrás era sempre em frente o seu caminho,
uma subida íngreme,
e rosnavam-lhe os cães,
e quando orava tinha visões do abismo,
e tudo ardia em volta,
e abandonavam-na os filhos,
e toda a noite tinha pesadelos,
e ouvia ao longe,
mas cada vez mais perto,
o grito interminável com que a morte,
mais do que chamá-la,
a invectivava,
a arrancar-lhe os cabelos,
a enredar-lhe os pés,
num sobressalto terrível, contínuo, insuportável.
Mais para a esquerda, está uma mulher jovem.
Se virmos bem,
cegos que somos,
veremos como lhe tremem as mãos,
enquanto escolhe um lugar apropriado para pôr a bandeja
que irá receber a cabeça do profeta.
É ainda nova para tanto alarme, a rapariga,
e o corpo ressente-se-lhe do que sente,
a trança presa por uma fita de veludo e a boca fechada
para que não entre em si o silêncio circundante,
e as suas lâminas não lhe atinjam as entranhas.
Do mais, nem quer saber: estava a bom recato e veio por uma ordem,
sendo que, sempre que é assim, o melhor é obedecer,
manda quem pode,
e quando lhe dirigem uma ordem só tem que a cumprir,
cala-se e faz,
por muito que prefira a frescura dos canteiros,
o doce odor que vem das laranjeiras,
o rumor da água a crepitar nos tanques,
o jardim, lá fora.
Restam dois homens. Um empunha a faca,
que esconde atrás das costas.
Com os braços possantes e as pernas vigorosas,
inclina o corpo em frente,
a sujeitar o que está por terra,
conferindo ao desempenho a força necessária,
nem maior, nem menor,
porque tudo é uma questão de adestramento:
matar um porco, ou um boi, é, no fundo,
o mesmo que matar um homem,
basta saber como empregar a força,
em que lugar fixar a lâmina,
que movimento usar para que não suje as mãos e o rosto.
Por ele, não há que duvidar: o que há para fazer
deve ser feito eficazmente e sem perguntas,
que até podem ser mal interpretadas, a contaminar
a confiança do amo,
sem que valha a pena.
O outro homem é João Baptista.
No chão manietado,
detido e indefeso,
não se sabe o que pensa,
se reza ou se é divino o seu silêncio,
se nos olhos cerrados é um rebanho que vai,
ou se só cuida de ovelhas tresmalhadas,
exactamente agora, no último momento,
como fez em toda a sua vida.
De tudo quanto fez e quanto viu
o mais de que se alegra foi ter baptizado Jesus Cristo,
e todos os demais, sacrílegos e ímpios, descrentes e pagãos,
e ter por certa, agora, a recompensa dada aos mártires pelo céu,
que lê o infortúnio como dádiva,
e o destino que chega como confirmação
de que, sob o arco do tempo,
há-de passar Salomé e a blasfémia,
e a crueldade,
e Herodes,
e cada um dos criados e os escravos,
e os reféns,
e os que, com ou sem arrependimento,
acicatam a carne e a degolam
no resguardo das caves,
para que ninguém veja a violência atroz,
salvando-se, ou não, a salvação.
Por fim, no quadro, há outra luz: a luz que, em contrastes, se insinua
nas figuras e faz ver o que lá não está: a mancha azul, opaca, na escuridão latente
– a que os dois vultos,
que da janela obscura espiam, sempre,
não podem escapar,
talvez porque um deles seja o próprio autor desta pintura
e o outro seja Deus
– Deus que observa a sua criação sempre em silêncio e permanece imóvel
para que Caravaggio alcance a claridade e reproduza
este agoiro de luz, imperscrutável.
(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)
Caravaggio, 'A Degolação de S. João Baptista', Óleo s/ tela, 361 x 520 cm, Catedral de S. João, La Valetta, Malta, 1608