CIRCUNCISÃO
Com uma fina lâmina e uma agulha acerada
circuncidarão as voltas do meu corpo e nada mais farei
do que sorrir: o pintassilgo canta, ainda que o caminho
para a montanha seja só terra cá em baixo e luz sagrada
nas alturas. E em Magdala eu sei que há árvores que mudam
de lugar, sendo que as aldeias em volta permanecem,
com as suas casas de adobe e os seus jardins resplandecendo
na luz crepuscular, seja dia ou noite, ou partam
ou regressem os rebanhos das pastagens.
E sei que há carros de fogo que descrevem círculos
sobre os povos, e que para o amor é necessário paciência,
tal como é preciso paciência para que o fruto amadureça
e a maçã possa comer-se, ou o trigo, que precisa de tempo
e de calor para crescer, ou a águia, que em voos sucessivos,
sempre em volta da presa, há-de cumprir a missão
de alimentar os filhos, para que, de águia em águia,
progrida o mundo e se amplie a natureza.
Ah, correm os rios pelo meu corpo, e sei como
não permanecerão selados os meus lábios, e que no meu peito
fervilhará a azáfama dos homens, e que o sangue há-de correr,
e que assim me entrego, agora, desde já,
para que a extensão do sacrifício seja demolidor
e eu cerre e não cerre os punhos, e esta água
se verta para além do deserto da Jordânia e seja vinho,
e este vinho se expanda para além da discórdia,
para lá da vertigem,
para lá de Roma e de Alexandria,
para lá do inferno
e do paraíso.
(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Circuncisão', óleo s/ madeira
Bonito Blogue,
ResponderEliminarParabéns!
'circuncisão' ... arrepiante! ;)
Beijo