quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Sobre as imagens # 5

ADORAÇÃO

Ajoelham e adoram os que já se arrependeram
e na flámula inscreve-se o que há para dizer-se e repetir-se:
«paz na terra aos homens de boa-vontade». E eu,
com o incenso, a mirra e o oiro fico mais rico nesta pobreza
infinda, mordendo os lábios e arrepelando os cabelos,
embora disto se não saiba e isto se não veja,
porque não pode uma criança mais ser que ser criança,
mesmo humana e divina ao mesmo tempo.

Mas uma estrela guiou quem aqui está, e nós, pó de estrelas,
devemos atolar-nos na vasa tépida do rio, e, a vau, atravessá-lo
como se fosse um céu, um céu de magnificência e de prodígios,
a que os reis se confiam, porque há reinos absolutos sobre os reinos
onde o manjar alimenta o espírito e os seus estrépitos,
as suas desolações e as suas ruas festivas e felizes,
quer eu ria e sue sangue,
chore e ranja os dentes,
ou dê graças.

Pois é assim o meu reino, entre a fadiga e a fome da jornada,
porque quem chega e adora se sacia, ardendo o incenso, queimando-se a mirra
e incendiando-se o oiro, absorvendo-se tudo e tudo revertendo
para a libertação dos pobres, esses que se rojam sobre as pedras,
esses que Deus fulmina, esses, ainda, que batem com a cabeça
contra as pedras para que a adoração se prolongue e engrandeça.

Por mim, também ajoelho: há uma luz, fortíssima, que me ergue a cabeça
e ma abate, e sou um homem de boa-vontade,
e sou filho do homem,
e criatura de Deus, e abençoado,
pelo que assim adoro, para todo o sempre
– e este é o meu corpo e assim o entrego,
como uma palavra simples,
quotidiana,
imortal. 


(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
 
 
 
Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Adoração dos Reis Magos', óleo s/ madeira, 1501/6

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