ANUNCIAÇÃO
Minha mãe está atónita porque o chamamento
se irá cumprir. Ao que é chamada não há
como deixar de responder, nem tanta luz seria
suportável quando é por escuridão que o céu clama
e tudo, em volta, arde. Por isso, na imagem, está assim,
com o corpo estarrecido e o espírito suspenso por tanta graça
a irradiar desgraça sobre a amena tempestade
que em seu olhar flui, enquanto o anjo fala.
Não é tudo um equívoco, não há neste silêncio
senão esse propósito em que a transparência se faz opacidade,
porque não há como suportar sobre a cabeça tal leveza,
embora o anjo seja a sombra iluminada com que Deus se anuncia,
fazendo dessa súplica a ordem e a desordem onde o poder
perpassa com o alento de uma espada que busca o coração
para que o coração se expanda, em nome do mistério e do abismo.
Grandes estrelas alvoroçadas se entrelaçam.
E, imparável, vem o céu mostrar que em tudo
não somos mais que argila que um aroma contagia,
um caminho infinito entre as brumas da manhã e as areias da Betânia,
onde a água escasseia mas os poços
são coisa viva a entretecer as dúvidas divinas
sobre as dívidas dos homens
para que a remissão nos possa possuir
e não se confunda a terra.
Eis a terrível claridade que há nas trevas, o sequestro fecundo
onde se escuta o choro mas as lágrimas se não vêem,
porque assim são os servos e assim tece o abismo
a sua oferenda a quem não pode mais do que acreditar que o sonho
é já muito diferente do que se observa em cada pesadelo,
por insondáveis que sejam os desígnios dos que não podem mais que obedecer
e nada haja mais a fazer do que saber que há-de um inocente aqui chegar
por via da inocência desta jovem mulher, minha mãe.
E eu, ainda por nascer, sendo quem sou, o bálsamo e a ferida,
sei que o meu nome será mais do que um nome para o céu
e que a terra há-de cumprir-se pelo clarão que a eternidade
emana, enquanto o sangue desta mulher perplexa
for o meu sangue, o sangue derramado neste dia
em que o anjo expressa a esta luz o que na luz
é lento e se expande como água.
(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Anunciação', óleo s/ madeira, 173 x 92 cm
Meu amigo é sempre muito bom chegar ao seu
ResponderEliminarblogue e encontrar muito boa poesia.
Mas hoje, vim especialmente desejar-lhe e a
sua Família um Feliz e Santo Natal.
Beijinho
Irene
lindo este poema, do seu natal (ou talvez do natal de cada um de nós), desse instante em que iniciamos a vida, sangue com sangue de nossas mães, e se estende pelas horas de luz e de sombra.
ResponderEliminarum abraço, Poeta, e votos de Boas festas,
Maria Manuel
escrever é isto...
ResponderEliminara que tantas vezes tento chegar...
mas não consigo...
a minha reverência Poeta!!!