sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Caravaggio / 3

CARAVAGGIO: A INCREDULIDADE DE S. TOMÉ

Acredito no novilho primogénito
e no basalto erradio da Galileia.
Acredito na transigência de Abel
e no gesto truculento de Caim.
Acredito no cinamomo e no bálsamo
aromático, e no ónix, e em Loth.

Acredito que Judite, a filha de Marari,
derrubou os gigantes com a sua formosura.
E na perturbação dos Persas e dos Medos
perante quem os castiga. Acredito
na aliança, na terra,  e que o terebinto
há-de estender os seus ramos
na amplidão do deserto.

Acredito que as gerações fenecem
para que outras nasçam. Assim como acredito
que são belas as mulheres de Jerusalém,
sem que as tenha olhado longamente.
Acredito na sombra e nos estigmas,
e no prodígio das dádivas.
E acredito que são insondáveis os caminhos
que levam à abundância.

Acredito no bordão e nas sandálias,
e que ainda há homens dignos na cidade.
E acredito na oliveira dos campos
e nos desígnios com que alguns clamores
nos vêm perseguir. Acredito na escada de Jacob,
e que brotou da rocha a água,
e que as colinas podem ser cordeiros de um rebanho.

Acredito na essência preciosa
na barba de Aarão, e no orvalho de Hermon.
E que haverá vida para sempre.
Acredito nas harpas suspensas
nos salgueiros, porque exigiam canções
e, na Babilónia, tal como em Sião,
era cativo, o povo.

Acredito em Noé, e na canção
do poço. E que nevou no Verão,
e choveu, na ceifa. E que a maldade
dos homens é infinita. Acredito que há
corações feridos e mirrados
como erva. Acredito na coruja
das ruínas, e que os que vituperam
o inimigo, ainda assim,
devem ser vigiados. E acredito
na pomba, no pântano, e no hissopo
que cura e regenera.

Acredito em Sodoma e Gomorra
e na pestilência de alguns lugares,
assim como acredito no hino das aves,
e que estão em flor as vides,
e a figueira é benigna.
Acredito em Moisés, e na fragrância
do monte de Beter. E que o índigo
é uma planta mágica, de que retiro
o mais belo azul.

Acredito na dança e no adufe,
e que a voz da rola se estende sobre a terra.
E acredito que o amado pode
fazer como o veado ou o filho da gazela.
Acredito nos que praticam a justiça
antes da morte. E no refrigério da tenda,
e na esperança.

Acredito no pó e no engendramento
de algumas maravilhas, e no barro,
e que chegam recompensas
da esfera alta, da luz, e das estrelas.
Acredito que a dádiva santifica,
e acredito no penhor do sacrifício.
Acredito que o que pede pão será saciado.

Acredito no profeta Jeremias
a louvar as lágrimas, e em Job,
que sabe que o cavalo
é um fulgor possante. Acredito
no mistério, e que há um pano espesso
e invisível entre nós e os anjos,
entre nós e o céu. E na centelha,
eis no que acredito.

Acredito em Baal, e na noite da vigília.
E em Daniel, na cova dos leões.
E em Jonas, no ventre da baleia.
Acredito que se deve preservar o trigo
e festejar as primícias. E acredito no escravo
que, num murmúrio, exprime a liberdade.

Acredito no brilho do espírito
e na resina do pinheiro. E acredito
nas cores, nos verdes e vermelhos
com que se esboça uma veste, ou um pregueio.

Acredito no sol, no áspero espinho.
E que a poeira é cinzenta, e cinza, e negra.
E que no Horebe tudo arde.

Acredito no rábano silvestre e que Elias
dele se alimentou em Jericó.
E em Lilith, também acredito,
seja ela o vento, a lua,
ou o próprio inferno.

Acredito na cobra e no seixo rolado,
na árvore e no arroio. E acredito em Babel,
no mal e na serpente, e nos arcanjos
que velam, entre nuvens de fogo.
Acredito na luminosidade e nos clarões
da distância, e como pode
um brilho ser decisivo num quadro,
a iluminar o oculto.

Acredito no galo, e acredito em Pedro,
mesmo que negue Cristo, só por medo.
E acredito no anho, no peixe, e no pelicano
– e no mistério. Acredito na treva e na manhã.

Acredito até que num guia cego se mostra
a rota certa. Acredito no vinho,
em Canaã, em Belém, e nos pastores,
e acredito no mar de Tiberíades.
Acredito que à perseguição dos inocentes
se seguiu a chacina. Acredito em José,
o carpinteiro, e em José de Arimateia.
Acredito nos justos, nos rectos, nos legítimos.

Acredito em Simão, o cireneu que levou a cruz.
E em Verónica, e em cada um dos pregos
da crucificação. E acredito na pena, e na vertigem,
e que o silêncio tem a boca cheia de palavras.
Acredito na perdição de Agag, e em Balaão,
o filho de Beor. Acredito nas miríades de Efraim,
e de quantos em Manassés estão.
E no sermão da montanha, e no sepulcro,
perfumado de aloés.

Contudo, eu,
Michelangelo Merisi Caravaggio, tal como Tomé,
vacilo em acreditar na ressurreição dos mortos
e na vida do mundo que há-de vir,
provavelmente porque é coxo o meu idioma
e para acreditar preciso de atingir
a chama que me há-de incendiar
tocando, ou não, a ferida que nos sara.


(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)





Caravaggio, 'A Incrudelidade de S.Tomé', Óleo s/ tela, 107 x 146 cm, Sanssouci, Potsdam, 1601-1601

1 comentário:

  1. um poema intenso, que são muitos os assassinos e variadas as maneiras.
    que a dor infligida no corpo e na alma só poder ser visível num poema assim!

    abraço, Poeta.

    ResponderEliminar