CARAVAGGIO: O MARTÍRIO DE S. MATEUS
Embora a dor seja uma ciência
comum
e todos a reconheçam,
mesmo em momentos felizes,
importa dizer que há dor infligida
pela sombra
torcionária,
que o recôndito das coisas manifesta
surdamente,
como se nada se passasse no momento
em que acontece.
A faca é uma emboscada
no escrutínio assassino,
que avança lentamente
pelas zonas de penumbra
até que a lâmina encontra
um ponto em que não há
resistência e penetra
a carne da vítima
e provoca o esgar
pelo reconhecimento do golpe.
Há também os casos em que o homicida
usa as mãos como arma,
que são como dupla sombra a aproximar-se
do pescoço e a apertar a garganta
até que na luz das órbitas do condenado
nada haja mais que a transfiguração
dessa mesma sombra,
no início
não mais que um rastro azul
a brilhar no branco dos olhos,
e, depois, só uma agonia informe
a expandir-se no rosto,
que em súbitos estremecimentos
amplia a dor até ao último,
desarvorado,
suspiro.
E há os que preferem recorrer ao martírio
pela simples insídia,
sem derramamento de sangue,
mas a perseguição
mais ou menos subtil ao que há-de morrer,
tecendo sobre o outro
uma terrível teia de afrontas mortíferas,
em que a marcha da perseguição
abarca o disfarce da ofensa,
tal como fazem
os dominadores,
os exércitos de destruição maciça,
os cobradores de impostos,
a rede global de intoxicação,
o flagelo da fome e da doença
sobre os povos, a dose eficaz de malignidade,
enquanto cada
um de nós se vai sombriamente convertendo
em cúmplice dissoluto da ignomínia.
Outros há que elegem o emparedamento
da ansiedade, e voam sobre
as caves a arrastar as vítimas
do holocausto por escadas íngremes,
onde não chega o eco das detonações,
mas há sempre ensejo
para a sedimentação do terror,
uma fogueira acesa
ou apagada a aguardar
que o veneno exerça os seus obscuros talentos
e, por fim, extermine,
para prevalecer –
eis o que digo, Michelangelo Merisi Caravaggio.
(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)
Caravaggio, 'O Martírio de São Mateus', Óleo s/ tela, 323 x 343 cm, Igreja de São Luís dos Franceses, Roma, 1599-1600
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