sábado, 5 de novembro de 2011

Vida adulta / 29

DOIS MIL E TRÊS

Aos cinquenta anos há já poucas decisões
para tomar.

Os filhos estão criados,
há muito que deixaram de tocar a relha
do arado
e de olhar as árvores
como poderosos
instrumentos da imperceptibilidade.

Sem alegria,
ouvimo-los sussurrar,
quase em segredo,

«agora não se agaste,
de há uns tempos a esta parte pertencemos
a um reino
de números primos
e não queremos voltar ao canavial».

Aos cinquenta anos,
nem já um cão queremos ter,
vamos de café em café a pôr questões inúteis,
a perguntar
se o desejo que temos pela mulher que passa
é realmente genuíno,
ou só a desejamos
pelas meias violeta que lhe iluminam
a perna,
fazendo entretecer a agitação do corpo
com uma certa graciosidade incontornável.

Aos cinquenta anos,
apenas indagamos as horas a que é o jogo,
sem qualquer intenção de o irmos ver
ou anotar na agenda
a hora pré-determinada
da consulta
em que a exclusão nos vai visitar,
aqui,
ali,
no centro médico,
ou na capela mortuária
onde dizemos um derradeiro adeus
ao mais pontual amigo.

Aos cinquenta anos,
constatamos que o radiador perde água,
que a lâmpada fundida está coberta
por uma fina película de poeira
que nunca víramos antes,
a mesma poeira que suja a nossa pele,
a nossa excessiva presença pela casa.

Aos cinquenta anos
a cabeça vai-nos caindo sobre o peito
e sufocamos com sono
e os joelhos dobram-se sobre nós,
no exacto momento em que recitamos a oração da infância,
com medo do escuro,
o mesmo medo do escuro
de quando éramos meninos
e o vigor dos nossos tornozelos suportava
a correria no vento,
entre os fetos.

Aos cinquenta anos
perdemos mais um dente,
espiamos a cabeleira ainda farta,
percebendo que não nos irá faltar cabelo
até ao fim,
se, eventualmente,
a radioterapia se desviar de nós
e o arsenal químico do costume
se não interpuser entre a nossa ténue esperança.

Aos cinquenta anos
ainda projectamos ir pela pedreira
à procura de mica e feldspato,
ainda interpelamos a morte
com as mãos vivas, ensombrecendo
o chão à nossa frente,
limpo,
sinuosamente limpo à nossa frente,
atirando uma pedra para o lago
na tentativa vã de descobrirmos
o que são esses círculos circuncêntricos
que, com mansa bonança, avançam
para a margem.

Aos cinquenta anos,
dizemos, entre-dentes,
“calma, não é, ainda, o fim do mundo”,
enquanto perscrutamos o sulco
que a retroescavadora abriu
no campo largo.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

1 comentário:

  1. gostei, gosto da sua linguagem poética :)
    eu, que tenho 51, revejo-me em vários dos seus versos. mas também digo «ainda não é o fim» porque, se a nossa perspectiva e as nossas interrogações são outras, espero continuar a tecer alguma coisa.

    abraço!

    ResponderEliminar