sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 5

durmo nos joelhos do meu pai por um preço incalculável,/ esta noite
não demorarei a encontrar a inquietação,/ a minha mãe
está ausente no estreito corredor que atravessa a casa,/ há,/ no ar,/
um alarme circunscrito à travessia,/ a travessia do sonho em que sou pequeno

e desvalido,/ com as mãos encharcadas de medo/ e vertigem./ o alvoroço
vem de um lugar próximo e longínquo,/ vem das traseiras da casa
onde as crianças subvertem o sentido do real,/ vem de um sismo que atravessa
a cabeça e a inclina para a terra,/ pondo-me/ sem sentidos,/ com os olhos

no mar./ o alvoroço vem de um lugar onde a voz cai sumptuosamente
sobre o chão,/ vem como uma luz que me atropela,/ sendo esta noite
uma hegemonia de sombras em que não há céu,/ já,/ não há senão
uma câmara irradiante onde me encontro febril/ e a minha carne cede

ao impacto de uma pulsão,/ lancinante./ durmo nos joelhos do meu pai e estou assustado,/ no limiar do mundo não há mais do que duas árvores/ e uma inscrição
apocalíptica,/ um pano vermelho abriga-me da luz,/ mas estou indefeso,/ estou
cercado por monstros marinhos e tigres,/ monstros marinhos e corvos,/ monstros

marinhos e rumores/ incertos./ as mãos de minha mãe tomam/ a minha cabeça,/
afastam as sombras que me sitiam,/ mas o pai está atento,/ o meu pai
faz-me dormir nos seus joelhos por um preço incalculável,/ risca um fósforo
na minha pele/ deixa que as chamas me subam pelos joelhos

e sitiem a cabeça,/ deixa que o sulco na carne alastre pela sua navalha
e atinja o meu sangue,/ e a minha cabeça se incendeie./ o alvoroço
vem de eu olhar fixamente o horizonte,/ estou nessa linha intacta
como se flutuasse,/ o meu incêndio é um mistério enorme,/ enorme

como o regozijo de meu pai por esta sarça que arde./ vou por este caminho
com o vagar do cordeiro,/ vou alucinado pelo intenso chamamento
febril,/ e subo/ e desço/ ao vale onde se concentram as sombras./ o fogo
assinala a porta que não devo cruzar,/ o fogo é intenso como uma sombra,/

o meu pai vela por mim por um preço incalculável,/ e minha mãe assiste-me,/
de longe./ a cada queda,/ há um silêncio incontornável à minha volta/ sempre que me
encontro febril e tenho medo,/ um medo insano,/ contínuo,/ árduo,/ enquanto
o incêndio alastra ao corredor estreito que se abre/ à minha frente,/ e a minha

convalescença estabelece a premonição sobre todas as coisas,/ a ira do pai,/ o afã
maravilhoso da mãe,/ sobre a navalha que se abre/ e fecha,/ o fósforo que o meu pai
risca na minha pele para que eu arda,/ arda até que a noite desvele o meu sono e seja
manhã,/ e a claridade toque a minha pele,/ e todas as sombras sejam apenas sombras

quietas de árvores pacíficas./ de todas as árvores,/ quietas e pacíficas,/ mais
do que a da sombra da que chamam figueira,/ a árvore do diabo,/ diz meu pai,/ quero
a sombra da árvore a que chamam ácer,/ dos seus ramos mais altos/ é possível ver
a linha do horizonte transfigurar-se em assombro,/ mais do que a figueira,/ o meu pai

sempre condenou o ácer,/ não sei porquê,/ a boa árvore/ da madeira dos barcos,/ do mar.
esta noite o vento beneficia o rumo do sonho,/ diz minha mãe,/ o que é turvo/
transparece,/ amplia incalculáveis/ redutos entre o mundo e mundo,/ oiço/ e estou
febril/ a desocultar a transumância,/ a alacridade,/ vivo e vigio,/ e a navegação

é intensa,/ magnífica,/ sobre os joelhos do meu pai,/ sem mais sobressaltos
que o alarme circunscrito à travessia em que eu/ cresço.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006
 
 

Foto: © de Amadeu Baptista
 

1 comentário:

  1. Que dizer? É a terceira vez que leio este poema. Aqui no blogue, no livro já o tinha lido outras tantas. E sempre me aperta a garganta. Há poemas que não se comentam. Não há como comentar. Apenas é possível ler em silêncio e esperar que a dor passe. Para voltar ao princípio e ver se alguma coisa ficou por sentir.
    Amadeu é um poeta Maior. Não sei de que tempo. Talvez intemporal. Que sorte viver ao mesmo tempo que ele... que sorte acompanhar-lhe a obra. Que sorte conhecê-lo.

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