Acabo de ter notícia da morte de Lêdo Ivo, em Sevilha, no passado dia 23. Tive a felicidade de o conhecer pessoalmente nas Correntes de Escritas, em Fevereiro de 2009. Numa das cartas que teve a amabilidade de me escrever, referiu, apesar da nossa diferença de idades, «sermos amigos de infância».
Em 1995 publiquei no nº 640 do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias este poema, em sua homenagem:
SOBRE UMA FOTOGRAFIADE LÊDO IVO
Tenho agora a imagem de Lêdo
no seu sobretudo galopante
e sei como me fala de uma raposa
de bronze, na estadia precária
desta vida.
Visito-o nas palavras estranhas,
essas mesmas que usa na navalha
diária para escrever
enquanto um manto de escuridão e luz
lhe ensombra e clarifica o rosto.
Ledo o vejo ainda entre cadelas
e putas
a sobrevoar aeroportos
e a perder-se de rua em rua
como um soldado
antes de celebrar o armistício
e desfraldar ao vento
a bandeira da pátria nunca vista.
Ele acompanha-me
e faz-me bem relê-lo,
Lêdo no coração
com a professora de estética
que bem poderia ser a causa próxima de uma paixão
se fosse a outra,
a que tomou café no mesmo café
onde eu escrevo agora
e se não chama Clitemnestra,
mas ocupa secretamente uma parte do meu quotidiano deslumbrado
Pedem-me que traduza. Algo pede para ser traduzido,
como se não estivesse já escrito. Há outras palavras?
Tudo está já escrito. E com a mesma escrita.
En resa till jordens medelpunkt och andra dikter, 1966
POEMA SOBRE O REVISIONISMO
Mosca incerta
fechada num expresso nocturno
trata no entanto de voar
e descobre que pode continuar a fazê-lo perfeitamente
Quando chega do extremo sul do vagão ao norte
já é uma mosca muito mais inteligente
e o comboio afundando-se cada vez mais veloz na noite
Varma rum och kalla, 1972
SOBRE O BOM GOVERNO
As pedras do moinho moem; quando se acaba a moenda
começam a polir-se mutuamente, implacavelmente,
com um rechinante som que é difícil suportar.
Tem que haver um enigma, sempre tem que haver
alguma coisa que caiba entre as pedras. E ainda melhor
se está lá sem que se mencione o seu nome.
Nas cidades cada vez mais atarefadas, tarde na noite,
ressoam entre superfícies de azulejo ou de metal leve
gritos de raiva ou desespero, o ruído rechinante
da pedra quando resvala nua contra outra pedra,
e alguém parte com as suas mãos uma porta de vidro,
de modo que os estilhaços riem alegremente pelo chão
embora o chão permaneça igual, casas brancas e negras, pelo outro lado.
Um dos lados é só a imagem do outro.
Quando o moinho se mói a si mesmo ouve-se claramente o ruído,
distante estrépito, uma tempestade de pedra aproxima-se,
rajadas de ar podre e pó de pedra percorrem as divisões
num mundo subterrâneo onde voa um pássaro recluso
por labirintos de túneis baixos, sem dia nem noite.
Lá onde não há governo, não tem saída o pássaro,
lá onde não há Enigma, existe no seu lugar o Poder.
E reflecte todos os sons em paredes demasiado brilhantes.
O bom governo dá-nos boas estradas, burros e camelos
puxam com paciência e sem cansar-se, ao meio-dia
também, carruagens pesadas com rodas revestidas de ferro
sobre o amarelo cereal dos caminhos, ordenado, à sombra,
precisamente onde passam os carros, para que o separem as rodas.
O bom governo proporciona bons regadios, canais,
por onde a água flui rápida e transparente,
sobre pedras unidas artisticamente, sem algas,
poços profundos onde as grandes carpas brancas
que já não aparecem, se escondem nas trevas
e de novo se vêem lançadas à sua sensatez
quando alguma vez são içadas para o balde. O bom governo
permite que as carpas continuem a viver nos poços, as andorinhas
sob os beirais, os camponeses junto aos seus campos,
os velhos lenhadores nos bosques, os livros
continuam impunemente nas estantes, e no bosque
ninguém castiga os cogumelos, um bom governo
mostra a sua boa vontade também para com essas plantas diferentes,
essas que surgem do subsolo, tacteando
com dedos brancos ou castanhos, guarda-chuvas enrugados,
cobertos de viscosidades ou secos e com aromático perfume,
com cabeças que são tenras membranas fetais,
e no entanto duras o bastante para perfurar o córtex da terra.
O filósofo Mo Ti via o governo como uma geometria,
um desenho de campos em volta de cada poço,
terra comum, a terra privada, a terra dos governantes
os campos dos soldados e dos juízes, a totalidade
organizada num conjunto em equilíbrio natural,
sob os longos e flamejantes estandartes de seda,
adornados de dragões que movem as suas asas
quando chega o vento. Mo Ti era um bobo, esqueçam-no!,
Onde há um modelo há apenas vazio.
Sabemo-lo agora. Sabemos que o Enigma cresce em nós
e surge quebrando lentamente o córtex da terra,
como os tenros e estranhos cogumelos no bosque.
Todas as portas se constroem para poderem fechar-se.
Todas as portas se constroem para poderem abrir-se.
Quem fecha? Quem abre? Quem pergunta?
Todo o bom governo começa no eu, nas trevas,
no enigma que há em cada ser humano.
Estende-se da obscuridade do poço,
onde não pode ver nem ouvir nada,
até ao horizonte, e sabe que segue os navios.
Sabe que não sabe nada. Assim governa o Enigma:
Aqueles que não estejam dispostos ao maior respeito a si mesmos
não podem ter tolerância com os demais.
Bodin viu o sangrento caos das guerras religiosas europeias,
e elegeu, voltando a rosto para não ver, o absolutismo:
Melhor, dizia, um verdugo, um machado, um sentença
do que horizonte por onde vagueie o fumo dos incêndios,
como quer o vento, mas esqueceu-se do mais importante:
Que nunca poderemos dar o que nunca foi nosso.
Não somos nós que queremos a liberdade. Há algo,
escuro e surpreendente, em nós, que a quer
e a quer mais quando menos o esperamos. Chega
sempre inoportunamente. Algo escuro e impreciso
que existe em nós quer ser sempre outra coisa.
O ser humano. A peça que não encaixa
em nenhum quebra-cabeças. Sobretudo não no próprio.
E nisso que consiste a liberdade:
que algo em nós sempre quer outra coisa.
O bom governo é o que nos esqueceu.
Encerrados neste doce esquecimento
crescemos como crescem os cogumelos;
com humildade e sem limites, profundamente
sobre as caladas sombras das árvores.
N. do T. Mo Ti: filósofo chinês (472-391 a.c.) cuja doutrina, baseada no amor universal, desafiou, durante baste tempo, o Confucionismo; Bopin (Jean): destacado intelectual francês do séc. XVI.
Artesiska brunnar cartesianska drömmar, 1980
PÁTRIA
Andrea Mantegna pintou na Camera degli Sposi
em Mântua a origem e a glória da família Gonzaga.
No canto inferior esquerdo do quadro,
conduzidos por um afável jardineiro,
dois adustos cães, dogues alemães,
do pesado tipo que se introduziu então em Itália.
A rígida coleira com os seus cravos forjados,
as orelhas ansiosamente afiladas,
esses focinhos a um tempo nobres e gananciosos,
Isso, é a Europa. É a minha pátria.
Världens tystnad före Bach, 1982
Excursão de bicicleta durante a tarde:
A oeste levantam-se nuvens de temporal
e de repente começa a florescer o sabugueiro.
Oh, filha minha
nos meus verãos tive tantas aventuras
que nunca se realizaram,
entrego-tas a ti.
A ti dou este vento
em que os lilases mudam de aroma perante a tempestade
a ti dou estas encruzilhadas de caminhos
pelas quais nunca me aventurei
Sobre tudo isto cai agora uma suave luz,
a suave luz da distracção, da excentricidade.
Oh filha minha
é bom não fingir tanta tristeza
tão pouco fingir tanto medo como eu uma vez.
É bom não fingir tanto.
É bom andar sempre de bicicleta
envolta no suave vento do mês de junho,
no aroma dos lilases,
também quando o inverno estender os seus gelos.
É bom estar sempre a caminho.
Världens tystnad före Bach, 1982
Passadas as quinze primeiras páginas do meu conto
dou de caras com
o que as Notícias costumam chamar
«enérgica resistência».
Bem entrado na paisagem da minha narrativa
há alguém que resiste
que não quer ver o seu torrão natal assolado
por estes destacamentos de palavras.
Quem é?
Não sei.
Tem que morrer para que viva a minha narração?
Nisso creio.
Tem direito a defender-se?
Claro que sim.
E amanhã eu continuarei
na página que com tanto valor ele hoje defendeu.
Ingressando
cada vez mais dentro
e isto não tem fim.
Världens tystnad före Bach, 1982
A ENGUIA E O POÇO
Na velha Escânia havia um costume:
Nos negros e profundos poços
deitavam crias de enguias marinhas.
Essas enguias ficavam toda a sua vida
cativas nas trevas dos profundos poços.
Mantêm a água limpa e cristalina.
Quando alguma vez sobe a enguia do poço,
branca, horrorosamente grande, capturada no balde,
cega, retorcendo-se, entrando e saindo
do mistério do seu corpo, sem saber, inconsciente,
Lars Gustafsson. Nasceu em Västerås, a 17 de Maio de 1936. Licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de Upsala. Além de poesia, escreve também contos e romance.
O seu trabalho como crítico literário, na revista BLM, teve grande importância para os escritores da sua geração. É professor na Universidade de Austin (E.U.A.). Foi galardoado com o prémio Carl Emil Englund.
Jan Erik Vold nasceu em Oslo, no ano de 1939. Estudou Filologia e Literatura em Oslo, Upsala e Santa Bárbara (Califórnia) É poeta e ensaísta. Colaboração estreita com muitos músicos de jazz. É tradutor de William Carlos Williams.
Peter Laugesen, nasceu em 1942. Estreou-se em 1967 com o livro ‘Landskap’. É poeta e dramaturgo. A sua poesia tem raízes na geração beat, com influências de Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs –é considerada algo anarquizante, quer em termos formais como em termos de conteúdo, onde o belo e o feio são interdependentes.
Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algü'hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.
Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda minino, os olhos, brandamente,
manda que, diligente,
um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com üa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava.
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo m adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.
Foi minha ama üa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e. por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de quem eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.
Não sei como sabia estar roubando
cos raios das entranhas, que fugiam
por ela, pelos olhos sutilmente!
Pouco a pouco invencíveis me saíam,
bem como do véu húmido exalando
está o sutil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
para quem fica baixo e sem valia
deste nome de belo e de fermoso;
o doce e piadoso
mover d'olhos, que as almas suspendia
foram as ervas mágicas, que o Céu
me fez beber; as quais, por longos anos,
noutro ser me tiveram transformado,
e tão contente de me ver trocado
que as mágoas enganava cos enganos;
e diante dos olhos punha o véu
que me encobrisse o mal, que assi creceu,
como quem com afagos se criava
daquele para quem crecido estava.
Que género tão novo de tormento
teve Amor, que não fosse, não somente
provado em mim, mas todo executado?
Implacáveis durezas, que o fervente
desejo, que dá força ao pensamento,
tinham de seu propósito abalado,
e de se ver, corrido e injuriado;
aqui, sombras fantásticas, trazidas
de algüas temerárias esperanças;
as bem-aventuranças
nelas também pintadas e fingidas;
mas a dor do desprezo recebido,
que a fantasia me desatinava,
estes enganos punha em desconcerto;
aqui, o adevinhar e o ter por certo
que era verdade quanto adevinhava,
e logo o desdizer-se, de corrido;
dar às cousas que via outro sentido,
e para tudo, enfim, buscar razões;
mas eram muitas mais as sem-razões.
Pois quem pode pintar a vida ausente,
com um descontentar-me quanto via,
e aquele estar tão longe donde estava;
o falar, sem saber o que dezia;
andar, sem ver por onde, e juntamente
suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal m'atormentava
e aquela dor que das Tartáreas águas
saiu ao mundo, e mais que todas doe,
que tantas vezes soe
duras iras tornar em brandas mágoas;
agora, co furor da mágoa irado,
querer e não querer deixar d'amar,
e mudar noutra parte por vingança
o desejo privado de esperança,
que tão mal se podia já mudar;
agora, a saudade do passado
tormento. puro, doce e magoado,
fazia converter estes furores
em magoadas lágrimas de amores.
Que desculpas comigo que buscava
quando o suave Amor me não sofria
culpa na cousa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
o medo do tormento que ensinava
a vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto üa parte dela foi passada,
na qual se tive algum contentamento
breve, imperfeito, tímido, indecente,
não foi senão semente
de longo e amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
estes passos tão vamente espalhados,
me foram apagando o ardente gosto
que tão de siso n'alma tinha posto,
daqueles pensamentos namorados
em que eu criei a tenra natureza,
que do longo costume da aspereza,
contra quem força humana não resiste,
se converteu no gosto de ser triste.
Destarte a vida noutra fui trocando;
eu não, mas o destino fero, irado,
que eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
passando o longo mar, que ameaçando
tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora, exprimentando a fúria rara
de Marte, que cos olhos quis que logo
visse e tocasse o acerbo fruto seu
(e neste escudo meu
a pintura verão do infesto fogo);
agora, peregrino vago e errante,
vendo nações, linguages e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
só por seguir com passos diligentes
a ti, Fortuna injusta, que consumes
as idades, levando-lhe diante
üa esperança em vista de diamante,
mas quando das mãos cai se conhece
que é frágil vidro aquilo que aparece.
A piadade humana me faltava,
a gente amiga já contrária via,
no primeiro perigo; e, no segundo,
terra em que pôr os pés me falecia,
ar para respirar se me negava,
e faltavam-me, enfim. o tempo e o mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
nascer para viver, e para a vida
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse, atado à grã coluna
do sofrimento meu, que a importuna
perseguição de males em pedaços
mil vezes fez, à força de seus braços.
Não conto tanto males como aquele
que, despois da tormenta procelosa,
os casos dela conta em porto ledo;
que inda agora a Fortuna flutuosa
a tamanhas misérias me compele,
que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
nem bem que me faleça já pretendo,
que para mim não val astúcia humana;
de força soberana,
da Providência, enfim, divina, pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.
Que se possível fosse, que tornasse
o tempo para trás, como a memória,
pelos vestígios da primeira idade,
e de novo tecendo a antiga história
de meus doces errores, me levasse
pelas flores que vi da mocidade;
e a lembrança da longa saudade
então fosse maior contentamento,
vendo a conversação leda e suave,
onde üa e outra chave
esteve de meu novo pensamento,
os campos, as passadas, os sinais,
a fermosura, os olhos, a brandura,
a graça, a mansidão, a cortesia,
a sincera amizade, que desvia
toda a baixa tenção, terrena, impura,
como a qual outra algüa não vi mais...
Ah! vãs memórias, onde me levais
o fraco coração, que ainda não posso
domar este tão vão desejo vosso?
Nô mais, Canção, nô mais; qu'irei falando
sem o sentir, mil anos. E se acaso
te culparem de larga e de pesada,
não pode ser (lhe dize) limitada
a água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!
O retrato de Camões por Fernão Gomes, em cópia de Luís de Resende.
Este é considerado o mais autêntico retrato do poeta, cujo original, que se perdeu, foi pintado ainda em sua vida.
Luís Vaz de Camões (Lisboa[?], ca. 1524 — Lisboa, 10 de Junho de 1580)
Canção X, de Luís Vaz de Camões. Arte de Luís Miguel Cintra: