sábado, 10 de dezembro de 2011

Caravaggio / 5

CARAVAGGIO: DAVID COM A CABEÇA DE GOLIAS

(para Henrique Manuel Bento Fialho)

Esta cabeça, que David, com um olhar
piedoso, segura pelos cabelos,
é a minha, que decidi retratar-me
como Golias degolado,
após um combate sem tréguas,
mas já com um vencedor estabelecido
pelo céu, o destino, ou o que seja.

Os homens chegam à vida para viverem,
mas o que têm mais certo é que a vida,
ou alguém por ela,
se encarregue de, ou tarde ou cedo,
lhes mostrar o único caminho previsível,
permanecendo inimaginável
o exacto minuto do estertor,
o instante em que tudo se acaba
e a alma é entregue ao criador,
ou o criador a toma, sem mais,
ou só o vazio prevalente sobre tudo.

Era rapaz quando perdi meu pai.
Era um homem valente, que, dir-se-ia,
nada poderia derrubar,
apto para o trabalho duro, fosse a construir
casas ou a demoli-las, passando pelas estações
como um grosso castanheiro a recolher
do tempo somente o benefício, e das eras
robustez, e dos dias a alegria possível
de quem pouco mais tem que as mãos
com que se sustentar e uma casa pobre
em que abrigar-se.

Estava bem, o dia estava muito quente,
e sentou-se à mesa a refrescar-se
com uma malga de vinho e algumas azeitonas
até que o calor baixasse por alguma aragem
que amenizasse a tarde – e, de repente,
vi-o caído, como se tivesse sido fulminado
por um raio de que Deus não o tivesse protegido.

Perdi a minha mãe anos depois,
já eu estava longe da aldeia,
mas sei que a sua morte foi antecedida
por um longo período de doença
que a prostrou durante longo meses
e que se lhe meteu nos ossos
de um modo brutal, mirrando-lhe o corpo
e esvaziando-a do discernimento,
a ponto de não saber o próprio nome.

Não a vi no seu leito de morte
e, no fundo, prefiro que assim seja,
porque a posso recordar cheia de vida
às voltas pelo casebre onde vivíamos,
a arear os tachos e as panelas,
a tratar das galinhas e dos coelhos,
a pontear as meias,
a desmanchar as peças de carne
que o meu pai trazia como paga
do conserto de um telhado,
ou de um muro derrubado.

Havia nela, lembro-me,
uma ternura franca pelas coisas.
Mesmo se ralhava com as vizinhas,
que a não largavam a pedir um ovo,
um canado de leite,
ou um pé de salsa,
que nunca devolviam,
era doce e meiga,
sorrindo para todos e cuidando
de que fossem as zangas de curta duração
e as desavenças breves.

A ela devo a fascinação pela pintura.
Levava-me à igreja e apontava-me
a Via Crucis que, nas paredes do templo,
mostrava aos crentes o caminho
e, a mim, desvendava os traços do desenho,
a girândola das cores e os efeitos
que a luz fazia nos retratos,
a destacar o rosto de Pilatos a lavar
as mãos, as cabeças dos soldados
a jogar os dados, a silhueta de Cristo
a transportar a cruz, enquanto tropeçava
nas pedras e transpirava sangue,
e dor, e mágoa.

Ficava-me a olhar as estampas por tempos
infinitos, e a minha mãe deixava
que eu olhasse tudo aquilo o tempo que quisesse,
como se planeasse a aprendizagem dos meus olhos
e me adivinhasse o futuro
entre as tintas e as telas
com que expresso o tenebrismo
que cada coisa tem
quando é da vida que os contrastes chegam
e a arte é um movimento intolerável
para quem só pela arte se concebe.

Ando fugido há muito. Quer a justiça
que dê contas de um homem que matei,
mas um artista é sempre um perseguido,
senão pelos outros, pelo braço secular
que em si habita, e eu não me imagino
encarcerado, doente de malária,
longe dos meus pincéis, da minha pátria
pária, da arte a que o meu espírito se consagra
para que eu não morra nunca,
ou o temperamento com que me afirmo
perante os meus contemporâneos,
ou a memória que houver de mim.

À minha volta só vejo medíocres,
sem uma nesga de génio,
um gesto sublime que me espante
– defuntos já em vida,
maculam a essência de que vimos
e o teor vital de tudo quanto
deveriam amar e proteger
de modo a que nada se perdesse
e puro se entregasse
à procedência divina da nossa natureza.

É a minha cabeça que David
segura, pelos cabelos – no meu rosto,
o rosto de Michelangelo Merisi Caravaggio,
estão as marcas da luta
e os efeitos do combate desigual
que travo com a intransigência,
a castração e o medo,
em busca de um abrigo ou de um amigo
que saiba o que a luz faz quando nos entra
no peito e toma o coração
para que outra grandeza se estabeleça
na nossa condição

e a beleza estoure, à nossa volta,
e seja um festim, a vida,
e, por uma vez, levemos de vencida
a morte que não morre.


(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)







Caravaggio, 'David com a Cabeça de Golias, Óleo s/ tela, 125 x 101 cm, Galleria Borghese,  1610

1 comentário:

  1. fabuloso poema! da vida e da morte, da memória dos afectos e dos dias vividos, do olhar acutilante sobre o presente, da arte e da realidade... extremamente tocante.

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