POEMAS DE OLE WIVEL
O PEIXE
Escondes-te
na forma lisa do peixe
e deslizas silencioso na água,
sobes e desces serenamente
com as tuas delicadas barbatanas.
O que vês
com os teus inexpressivos olhos?
À primeira vista sentimos-te
como se fosses hostil aos homens.
A tua boca vazia
conta-nos apenas o que existe
na límpida esfera da bolha
um segundo – e rebenta.
Não fazes mais do que sonhar
na água suave, até ao dia
em que o dia se levante e as ondas
chicoteiem a costa estrondosamente.
Lá jazes tu, ensanguentado
entre espuma e algas – e és o nosso salvador.
I fiskens tegn, 1948
CRIAÇÃO
A assombrosa
paisagem sob as minhas mãos –
como
um pássaro elevado sobre colinas e bosques,
como
uma nuvem que vagueia pelo mundo e o divide
em
fulgurações de sol e lagos de sombra
assim
percorrem as minhas mãos as tuas ardentes formas.
Agora
a tua paisagem inclina-se debaixo de mi na noite –
estamos
de pé um contra o outro como céu e mar,
a
tormenta arquejante chicoteia as trevas à nossa volta
convertendo-as
em espuma branca de fugitivos pedaços de sonhos
e
todos os barcos do dia cabeceiam na nossa tormenta.
Agora
que o esquecimento nos libertou, já não nos recordamos
do
que é névoa de chuva ou bruma de mar.
Atrás
dos nossos olhos fechados descansa a madrugada
como
uma andorinha que vá estender as suas asas
para
nos transformar de novo em mundos separados.
Jœvndøgn, 1956
A
CATEDRAL DE COLÓNIA
Os
carros passam de largo.
Como
um martelo de passado
através
do verosímil
e
da lei da evolução continua de tudo
vemo-la
cicatrizada e explodida
entre
as ruas.
Uma
pedra sulcada de sonhos
ou
melhor:
uma
antena do passado
feita
para captar as bênçãos do céu
que
completamente ignoramos.
Fazemos
barulho no seu interior arrastamos cadeiras
vendemos
postais gritamos talvez
(como
quando se raspa a unha numa pedra).
Mais
valia demoli-la
sobrevoá-la
símbolo
inútil de estados interiores
que
ninguém reconhece (arcos de luz estendidos
sobre
o espaço do silêncio). Esforço ultrajante
longe
do lugar onde nos encontramos realmente
estes
minutos opressivos
e
finalmente a embriaguez da morfina.
Calma e saudade unidas
Elevando-se
para o
que
é inacessível a análises e provas.
E
no entanto ninguém ignora
a
existência de sons
que
o ouvido não capta.
(A
idade e o tabaco debilitam
as
papilas gustativas da língua.)
Soa
a música sobre as nossas cabeças
E o
que vemos
São
as engenhosas e vazias estruturas das estantes de música.
Nike, 1958
BOCCA
DELLA VERITÀ
Santa Maria de Cosmedin
Que
ocultava o poço sobre o qual paira esta cobertura
como
o rosto de um sonhador sobre um sonho –
lodo
de cloaca lixo água de merda
ou
água pura do diurno frio lunar das montanhas?
Agora
cravada a um muro junto à porta da igreja
um
grito afogado em mármore e olhos desorbitados
passas
de longe ante a boca da verdade.
O
sagrado sempre é traído por acção
denominação
e veneração
Fazer-se
imagens à sua própria imagem
cantar
para esquecer
receber
a hóstia para viver oculto
consagrado
no corpo e sangue do sacrificado.
Escuta
este arrepiante grito mudo
atrás
de ti
renegados
que fogem que não suportam
a
boca da verdade.
Fora
o ruído e a luz
gigantesco
pesadelo da metrópole
cambalacho
prostituição
necessidades
filisteias da legalidade
alquimia
da bolsa.
Mas
cada um só
combatendo em vão sob o fogo do sol
posto
avançado na borda do abismo
denominado
apenas por suportar o inominado
intocável
com a morte nos ossos
e a
marcha das formigas sobre os dentes nus.
Templet for Kybele, 1961
DI-AN
O
presidente Nixon com os cabelos a flutuar ao vento
e
barro vietnamita nos seus sapatos enlameados
troca
palavras amáveis com
os
soldados rasos.
É
um dia de julho de 69 na base de Di-an
quando
produz a seguinte proclamação
escutada
no mais profundo silêncio:
Empreendemos
uma tarefa difícil
e
temos tido sorte.
Na
história se escreverá creio
que
nesta guerra de grande amplitude
os
Estados Unidos viveram um dos seus momentos de maior glória.
Gravskrifter, 1970
O INDIFERENCIADO
Grita-lhe,
Job,
fedendo
na sombra da morte,
desonrado
por
esse déspota que se orgulha
do
rinoceronte e do cinturão de Órion.
Grita-lhe
antes
de te renderes,
ao
indiferenciado deus-tigre
que
ignora o grito da criança
em
chamas.
Não
fomos nós, velho
fanfarrão
de baleia e bruxo de estrelas,
os
que fizemos uma orgia
de
sede de sangue.
O
teu filho
expiou
a nossa ira contra a tua omnipotência,
vítima-canibal
para
que por fim pudesses esfumar-te
nas
tuas brumas e névoas
e
estender um sol misericordioso
nas
marcas do crucificado,
secar as suas sangrentos cravos
com
as tuas lágrimas.
ÍCARO
Estar
aqui ao sol
entre
gaivotas e peixes,
ouvir
o suave ressoar dos vermes
sob
a erva.
Os
caminhos desertos, as crianças longe
na
escola com os inimigos da bola
e
sacristães cansados.
Agora
tem que ser,
gaivotas
e peixes
usam
o universo cada qual no
seu
fluido elemento,
gritando
ou silenciosos
tridimensionalmente
enquanto
um don juan caído na praia
com
as suas patinhas engorduradas
luta
com um mosquito zumbidor.
Voo
por entre campanários e ondas,
vejo
nadar os peixes para trás
na
água clara
entre
medusas e algas,
equilibrados
e sensíveis à luz
eu:
gaivota-aficcionada,
excelso
ou o contrário,
caio
para as profundidades
com
coração palpitante
contra
estas ondas de ladrilho
e
voo para casa a coxear,
inválido
agradecido.
Versão minha - © Amadeu Baptista
Ole Wivel (1921- 2004). Nasceu em Copenhague, em cuja
Universidade estudou literatura. Fundou uma editora de vanguarda, que publicou
a importante revista literária Heretica,
de que foi co-director. Estreou-se em livro como poeta em 1948. Professor numa
Universidade Popular. Membro da Academia Dinamarquesa a partir de 1964.
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