quarta-feira, 4 de junho de 2014

OLE WIVEL




POEMAS DE OLE WIVEL




O PEIXE

Escondes-te
na forma lisa do peixe
e deslizas silencioso na água,
sobes e desces serenamente
com as tuas delicadas barbatanas.
O que vês
com os teus inexpressivos olhos?

À primeira vista sentimos-te
como se fosses hostil aos homens.
A tua boca vazia
conta-nos apenas o que existe
na límpida esfera da bolha
um segundo – e rebenta.

Não fazes mais do que sonhar
na água suave, até ao dia
em que o dia se levante e as ondas
chicoteiem a costa estrondosamente.
Lá jazes tu, ensanguentado
entre espuma e algas – e és o nosso salvador.

I fiskens tegn, 1948




CRIAÇÃO

A assombrosa paisagem sob as minhas mãos –
como um pássaro elevado sobre colinas e bosques,
como uma nuvem que vagueia pelo mundo e o divide
em fulgurações de sol e lagos de sombra
assim percorrem as minhas mãos as tuas ardentes formas.

Agora a tua paisagem inclina-se debaixo de mi na noite –
estamos de pé um contra o outro como céu e mar,
a tormenta arquejante chicoteia as trevas à nossa volta
convertendo-as em espuma branca de fugitivos pedaços de sonhos
e todos os barcos do dia cabeceiam na nossa tormenta.

Agora que o esquecimento nos libertou, já não nos recordamos
do que é névoa de chuva ou bruma de mar.
Atrás dos nossos olhos fechados descansa a madrugada
como uma andorinha que vá estender as suas asas
para nos transformar de novo em mundos separados.

Jœvndøgn, 1956




A CATEDRAL DE COLÓNIA

Os carros passam de largo.
Como um martelo de passado
através do verosímil
e da lei da evolução continua de tudo
vemo-la cicatrizada e explodida
entre as ruas.
Uma pedra sulcada de sonhos
ou melhor:
uma antena do passado
feita para captar as bênçãos do céu
que completamente ignoramos.
Fazemos barulho no seu interior arrastamos cadeiras
vendemos postais gritamos talvez
(como quando se raspa a unha numa pedra).
Mais valia demoli-la
sobrevoá-la
símbolo inútil de estados interiores
que ninguém reconhece (arcos de luz estendidos
sobre o espaço do silêncio). Esforço ultrajante
longe do lugar onde nos encontramos realmente
estes minutos opressivos
e finalmente a embriaguez da morfina.
Calma  e saudade unidas
Elevando-se para o
que é inacessível a análises e provas.
E no entanto ninguém ignora
a existência de sons
que o ouvido não capta.
(A idade e o tabaco debilitam
as papilas gustativas da língua.)
Soa a música sobre as nossas cabeças
E o que vemos
São as engenhosas e vazias estruturas das estantes de música.

Nike, 1958




BOCCA DELLA VERITÀ
Santa Maria de Cosmedin


Que ocultava o poço sobre o qual paira esta cobertura
como o rosto de um sonhador sobre um sonho –
lodo de cloaca lixo água de merda
ou água pura do diurno frio lunar das montanhas?
Agora cravada a um muro junto à porta da igreja
um grito afogado em mármore e olhos desorbitados
passas de longe ante a boca da verdade.

O sagrado sempre é traído por acção
denominação e veneração
Fazer-se imagens à sua própria imagem
cantar para esquecer
receber a hóstia para viver oculto
consagrado no corpo e sangue do sacrificado.
Escuta este arrepiante grito mudo
atrás de ti
renegados que fogem que não suportam
a boca da verdade.

Fora o ruído e a luz
gigantesco pesadelo da metrópole
cambalacho prostituição
necessidades filisteias da legalidade
alquimia da bolsa.
Mas cada um só
combatendo  em vão sob o fogo do sol
posto avançado na borda do abismo
denominado apenas por suportar o inominado
intocável com a morte nos ossos
e a marcha das formigas sobre os dentes nus.

Templet for Kybele, 1961





DI-AN

O presidente Nixon com os cabelos a flutuar ao vento
e barro vietnamita nos seus sapatos enlameados
troca palavras amáveis com
os soldados rasos.
É um dia de julho de 69 na base de Di-an
quando produz a seguinte proclamação
escutada no mais profundo silêncio:

Empreendemos uma tarefa difícil
e temos tido sorte.
Na história se escreverá creio
que nesta guerra de grande amplitude
os Estados Unidos viveram um dos seus momentos de maior glória.

Gravskrifter, 1970





INDIFERENCIADO

Grita-lhe, Job,
fedendo na sombra da morte,
desonrado
por esse déspota que se orgulha
do rinoceronte e do cinturão de Órion.
Grita-lhe
antes de te renderes,
ao indiferenciado deus-tigre
que ignora o grito da criança
em chamas.

Não fomos nós, velho
fanfarrão de baleia e bruxo de estrelas,
os que fizemos uma orgia
de sede de sangue.
O teu filho
expiou a nossa ira contra a tua omnipotência,
vítima-canibal
para que por fim pudesses esfumar-te
nas tuas brumas e névoas
e estender um sol misericordioso
nas marcas do crucificado,
secar  as suas sangrentos cravos
com as tuas lágrimas.




ÍCARO

Estar aqui ao sol
entre gaivotas e peixes,
ouvir o suave ressoar dos vermes
sob a erva.
Os caminhos desertos, as crianças longe
na escola com os inimigos da bola
e sacristães cansados.

Agora tem que ser,
gaivotas e peixes
usam o universo cada qual no
seu fluido elemento,
gritando ou silenciosos
tridimensionalmente
enquanto um don juan caído na praia
com as suas patinhas engorduradas
luta com um mosquito zumbidor.

Voo por entre campanários e ondas,
vejo nadar os peixes para trás
na água clara
entre medusas e algas,
equilibrados e sensíveis à luz
eu:
gaivota-aficcionada,
excelso ou o contrário,
caio para as profundidades
com coração palpitante
contra estas ondas de ladrilho
e voo para casa a coxear,

inválido agradecido. 



Versão minha - © Amadeu Baptista





Ole Wivel (1921- 2004). Nasceu em Copenhague, em cuja Universidade estudou literatura. Fundou uma editora de vanguarda, que publicou a importante revista literária Heretica, de que foi co-director. Estreou-se em livro como poeta em 1948. Professor numa Universidade Popular. Membro da Academia Dinamarquesa a partir de 1964.

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