quinta-feira, 19 de junho de 2014

UM POEMA EM QUE SE FALA DE UM MONARCA ESPANHOL NO DIA DA PROCLAMAÇÃO DE FELIPE VI, NOVO REI DE ESPANHA


GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1801)

(para Táti Mancebo e Alfredo Ferreiro)

Assim como há o cinismo,
há uma gramática do cinismo.

Cada mestre usa o seu
à luz do seu compêndio,
com  forças à deriva,
e consubstanciando
o alarde da pintura.

Tomemos o exemplo
da família real,
esta ou qualquer outra.

Se olharmos bem os rostos
vemos o que Deus
falha no mundo

– as insipiências
onde a criação é um malogro.

Mas o cínico sou eu,
embora o Príncipe
esteja talhado para a maldade,
com o corpo a três quartos,
olhando para trás,
sem profundidade,
mas a arrogância que é própria dos príncipes.

O Rei é uma amálgama de sucata,
que a idade sutura
e um certo ai que não dói
que se escuta em toda a corte,
lavando-lhe as mãos
na promiscuidade,
enquanto acata as ordens da Rainha.

Esta, ao centro do painel,
é só os braços
que mostra por contraste
com a riqueza insultuosa do vestido
paramentado de rendas espanholas
e formas que, há muito,
exercem a lascívia
a bom recato.

O mais são tétricas figuras,
que uma Princesa apoia colocando a altivez
em contraponto com gente impaciente pelo almoço
e as fatias de presunto quando a tarde
os puser a caminho do curral.

Lamento que a pintura não faça ouvir
os ruídos da rua,
o povo com os sacos de carvão sobre os ombros
e as putas com os ombros sobre os sacos de carvão.

Lá fora o mundo é a mais valia
do conjunto,
sendo que tudo está lubrificado
para que se note o estupro
e seja Deus, Nosso Senhor, crucificado.

E o cínico sou eu.

Por isso, à esquerda,
onde há um ponto de luz
que a sombra alcança,
olho de esguelha o universo
e quase que parece que sorrio.

Não é verdade.

A esse canto,
onde fito como posso os que estão,
sendo que os vejo de frente
e de joelhos,
queixando-se do reumático,
apenas conjecturo
como há aberrações
que podem tudo.

Passei por Moncloa
a um fim de tarde,
começava Maio
e dos campos desprendia-se
o odor sereno e violento
que há na terra.

E vi
como os massacres são, ainda,
o pão de cada dia,
por mais ou menos cínicas
que sejam as pinturas,
ou as armas estejam prontas para o abate.

E o meu coração
anotou tudo:

– a luz, sempre vital,
o pelotão de anónimos
e as suas vítimas,
a centelha de fogo,
ou água,
no olhar do condenado.

E, já tendo visto tudo,
quero dizer,
já tendo visto em excesso
deste excesso de vergonha
sem vergonha,
aferi o meu lugar
na tábua rasa em que vivo,
e morro,
e, sem sonhos, durmo.

Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.

Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal
de redenção,

enquanto o povo
é à míngua que morre
e eu, cínico sendo,
página a página leio este compêndio
que os cínicos maiores que o meu cinismo
instituíram.

Pudesse eu regressar a Fuendetodos,
ou fazer pintura sacra,
cheia de entorses e nervos,
com o Cristo ladeado de ladrões,
como eu estou.

Provavelmente,
entre a maga vestida e a desnuda,
preferiria chorar
até ao fim do mundo,
chorar
e abrir as veias:

para que o sangue corresse
e a pintura tomasse um outro rumo
de cores,
difusas, se possível,
repartidas.

Mas eis que a doença chega
e a vivacidade se esvai,
e estou cego
e totalmente surdo

e sou, assim, o cínico do retrato
a conferir ao mundo o mundo retratado
e os seus caprichos,
enquanto os desastres
e a guerra submeto
nas gravuras.

Já nem sei o que digo,
o tempo sobrevoa-me as têmporas
e onde estive não estou,
estando sempre
algures,
mais ano para a frente ou para trás,
mais cão ou menos cão nas telas,
mais cínico ou menos cínico
entre os cínicos.

O Príncipe, o Rei e a Rainha:
vesti-os de cores vivas
e, contudo, é de luto que está a minha arte,
porque, por esta comitiva,
nem para a eternidade
ressuscito.

Mas persisto.

Para isso é que o cinismo
recebe do cinismo
moedas de oiro,
e posso, quando posso,
com o branco de espanha
misturar azul cerúleo,
e ao verde-bétula
juntar óxido de ferro,
para que o esplendor da luz
seja o que é, na obra:

–  fútil, sem glória,
como é cada guerra,
embora lute sempre,

e não lhes dê tréguas, nunca.

Este é meu tempo:
tomai e bebei.

Este é meu tempo,
tomai e comei.

Por mim, como sempre, estou
cheio de fome.



(in 'Doze Cantos do Mundo', Sintra, 2009)


© Amadeu Baptista







(pintura de Francisco Goya, 'A Família de Carlos IV', óleo / tela, 2.80 x 3.40 m, 1801, Museu do Prado)

2 comentários:

  1. Um fantástico poema cheio de uma revolta interior enorme. Tocou-me profundamente.! Bem haja por nos colocar à disposição a sua tão bela " arte".

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