POEMAS DE ASTRID
HJERTENÆS ANDERSON
CAVALOS SOB A CHUVA
Quando a minha mente está cheia de sonhos,
mais escuros, mais remotos
que o meu pensamento pode explicar,
mais selvagens, mais ardentes
que o que pode
compreender o meu coração,
quero apenas ficar sob a chuva
como os cavalos permanecem sob a chuva
numa planície extensa e fértil
entre pesadas montanhas, como as daqui.
Estar imóvel e sentir que o corpo suga
este frescor, esta força, esta humidade,
que em torrentes impetuosas me molha
a cara, o cabelo e as mãos.
Assemelhar-me ao bosque que mama,
como uma criança, os peitos do céu.
Assemelhar-me à planície, transbordante de doçura,
palpitante de pios desejos.
Como estão os cavalos sob a chuva,
inclinados, com os flancos molhados,
deixando que o cheiro a terra e humidade
lhes percorra com força e doçura e mente,
assim quero estar e unicamente ser
e deixar que caia o chuvisco do céu,
até que o pensamento livre já de febre
leve os sonhos à claridade
numa calma duradoura e silenciosa.
De unge søylene, 1948
A MULHER E A DANÇA
Por que não me deixaram dançar?
A mim que posso levantar os braços para o ar
para que nasça o telhado luminoso do céu,
a mim obrigam-me a ficar estupefacta contra uma árvore
com os braços presos às costas!
Eu que posso estalar os dedos
e acender o cintilante voo da gaivota,
o mergulho da gaivota, o súbito encontro da gaivota com a
água,
eu tenho que apoiar a nuca na árvore e ficar assim
com os olhos fechados e os dentes cerrados!
Eu que posso dar voltas ao meu braço
de modo a que reluzam os ilhéus na água do fiorde,
com as suas casinhas de verão cor de óxido
entre botões de junquilho amarelos e a vegetação rasteira
dos ásperos amieiros,
eu tenho que sentir a casca da árvore a ferir-me a pele!
Mas eu posso ver com os olhos fechados!
Quando as praias se fundem e sangram as rochas,
posso dançar com o corpo trespassado,
posso tirar o pé para fora
para que se ilumine a costa!
Strandens kvinner, 1955
PAISAGEM
O céspede da minha manhã iluminado pelo orvalho
está cheio de um novo jogo renovado
um envelope de ar de um sol azul violeta
vibra em torno das árvores nuas
ao redor de um lago transformado pela luz
crescem cisnes na fria erva:
Eu sou a paisagem que tu estás a ver.
Pastoraler, 1960
O POETA RECITA O SEU PRÓPRIO POEMA
I
O poeta retorce-se no tapete de palha.
Os olhos deambulam em cruz.
Preferia ir de costas ao mar,
ser um eco rodopiante
do rochoso peito da noite.
Preferia estar calado e mudo
como a branca lua encalhada na escuridão,
como uma das outras luas petrificadas,
luas dançarinas, brancas como ovos
que estão ali fora na noite do vestíbulo.
Mas um trinado de pássaro
abre caminho pela garganta.
Há um pássaro pousado sobre a ramagem do seu coração,
condenado a sobreviver.
II
O poeta volta para a esquerda
como para um muro invisível.
O poeta volta para a direita
como a bailar com a sua própria sombra.
Agora sustém a respiração.
Agora bebe chuva.
De súbito põe-se em bicos dos pés
com a brisa matutina em volta dos joelhos.
De súbito cresce como uma árvore
com tronco e copa rumorosa.
Consegue-o: volta a ver os campos de sangue oxidado
e o fóssil do cérebro na praia deserta.
Reconhece a franja de erva sobre a qual está
e um contorno de noite envolve o abraço dos seres.
Consegue-o: há um pássaro pousado no seu ombro.
Numa paisagem de silêncio e de luz afastou-se a voar.
Pastoraler, 1960
A ROSEIRA
Apenas a roseira branca resplandece na noite de verão.
Só ela e o gato branco o que arde sem chamas e resplandece
na noite de verão.
São só os troncos brancos das bétulas que resplandecem
a competir com o
muro do palheiro.
Neste silêncio. Demasiado branco. Demasiado verde. O tempo
está imóvel.
Assim guardo o tempo mas mãos. Com palavras verdes e
palavras brancas.
É o que quis. Silêncio e palavras como rosas. Silêncio e
palavras como ervas.
Mas de repente vem um pessoa a caminhar por um campo.
Não sei de onde vem. Nem quem é. Nem aonde vai.
É apenas a camisa que resplandece. Eu mesma não sei se
resplandece.
Mais do que a casa o gato. Mais do que parede do palheiro e
as bétulas.
Mais do que a roseira, o branco que resplandece na noite de
verão.
Rosenbuskan,
1972
SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA
Entrego-me às verdes planícies.
As extensas e suaves linhas mórbidas que ondulam
e sussurram ao vento com as suas espigas de cereais.
Inclino-me perante as jovens bétulas da primavera
tão delgados e tão leves
em frente ao atraente mistério dos abetos.
Vejo-os bem. As vacas do novo verão
que pastam silenciosas sob a lua pagã.
A égua negra que vigia na erva
o filho primaveril. O potro de veludo castanho.
E tu meu amor que partilhas comigo
a tua primavera a tua respiração e os teus sonhos
reunir-te-ás comigo nesta luz alta.
Onde tudo o que é amor está profundamente unido.
Et våroffer, 1976
GEADA E CÉU SUAVE
Chegou o céu
talvez como o dia por casualidade
com pálida luz azul e suave
e tranquila respiração.
A geada chegou
talvez por causa do céu.
Os arbustos respiram branco
com pérolas de orvalho geladas no seu cabelo.
Céu e geada encontram-se
como quando dois amantes
de repente se encontram pelos caminhos
e fazem tilintar cascáveis de prata.
Já ninguém sabe quem chegou primeiro.
De tyve landskaper, 1980
NEGRA
POÇA EM ABRIL
Uma
caminhante sabe
que
o olho negro
no
rosto branco do inverno
sorve
e atrai todas as criaturas para ele
como
por artes mágicas.
Uma
caminhante sabe
que
transformação ocorre num alegre dia de abril
quando
o inverno se converte num frio pesadelo quotidiano
para
aquele que esteve preso no gelo até à cintura.
Uma
caminhante sabe então
que
o manancial do olho é uma dupla poça.
Para
a alegria, cheia de vinho pagão.
Para
a tristeza, cheia de lágrimas negras.
De tyve landskaper, 1980
Versão minha - © Amadeu Baptista
Astrid Hjertenæs
Anderson (1915-1985).
Naceu em Horten. Primeiro livro de poesia em 1945. Nos seus poemas nota-se um
feminismo decidido e vital. Tradutora de poesia inglesa e alemã. Prémio da
crítica sueca em 1964.
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