sexta-feira, 20 de junho de 2014

Um pouco acima da miséria



Tenho livro novo, acabado de editar na Galiza pela editora Espiral Maior, na sequência de ter ganho, no ano passado, o XXIX Prémio de Poesia Cidade de Ourense. Deste livro sairá muito em breve a edição portuguesa, que presumo será distribuída nos inícios de Setembro, com a chancela da &Etc.


Aqui deixo o poema que tem início na página 103:





UM SONHO DE JORGE LUÍS BORGES

A máscara pertence ao domínio
de quem vem ao palco agradecer três vezes
e corre perigo demasiado tempo
para encontrar a essência.

Atrás da coluna a máscara conclama
os sátiros da república, a procissão sacerdotal,
as linhas de angústia do real,
os bárbaros que estão no meio de nós.

No proscénio, alguém usa a máscara sob a fantasia
de coração arrebatado e credores à porta,
enquanto a acção decorre alheia à sedição
e o homem de joelhos suplica.

À luz contemporânea a máscara vai
de taberna em taberna à espera que o absinto
volte de novo ao encanto
e às ramificações esplendorosas do quotidiano.

A máscara do algoz será mais requisitada
depois do curso unívoco dos nossos predadores,
e em chapas metálicas de alumínio
reverterá em favor da eternidade.

Esta máscara simples e surpreendente
é o litígio, os sete pecados capitais;
em cada incandescência
a pantomina condena-nos à excrescência.

Esta será a máscara de Keats, ou mesmo de Pessoa.
Os poetas são da ciência obscura o vaticínio,
haja ainda alguma estrela para ver
sob o céu sem estrelas que nos coube.

Também a máscara do rigor se apresenta
neste constrangimento;
o corpo escava a escarpa
e o ruído de fundo é o demónio a marcar território.

Raiz e precipício é a máscara da morte
quando corre o vinho pelas gargantas
para contagiar quem vê e aplaude,
os dois dias da vida, os três do carnaval.

Observe-se esta máscara quase derradeira
que passa nos bastidores e não entra em cena.
Morto de fome o povo vem atrás
e acena à prosperidade infinita da cidade.

Em literatura a máscara ou a cabeça
induz à clonagem e à queimadura.
Sob o cérebro o olhar é mais severo
e a máscara prolixa, sempre irreversível.

A soletrar um verso, não obstante
os centros comerciais e os bancos ingleses,
vem a máscara de novo à cena
dizer que a vergonha engendra mais vergonha.

A máscara expectante, a máscara do drama.
Quando voltarmos a casa o filme a cores enfada,
tornámo-nos gente impaciente a afivelar
a máscara do sortilégio ausente.

A máscara da tragédia vem ao poema
corroborar a faca, a liga, o sindicato.
Não é nunca a máscara mais que ornato,
acontece tantas vezes no nosso assassinato.

A máscara interior, o seu diálogo
perdido entre o onanismo e a festividade:
tantas vezes vai o cântaro à fonte
que chove dentro de casa.

A máscara dos iníquos, a máscara dos equídeos.
De vazio em vazio passamos brandamente
e só o actor sabe como a cicatriz reluz
e só a actriz sabe como cicatriza a luz.

A máscara do amor: a secreta paisagem
que nos traz aqui em busca da nossa própria máscara.
Adeus penumbra e imensidão de lágrimas,
cabe ao poeta a máscara da ternura.



(in Um Pouco Acima da Miséria. Espiral Maior, Corunha, Espanha, 2014)



© Amadeu Baptista








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