terça-feira, 29 de abril de 2014

Um poema meu, de homenagem a Vasco Graça Moura




NO DESAPARECIMENTO DE VASCO GRAÇA MOURA

Os que nos vierem fazer o elogio fúnebre
Jamais saberão do que estão a falar
Quando de nós falarem, nem quais as brumas

Que sobre nós pairaram na resiliência
Que nos fez viver, escrever, amar e aturarmos
Tudo o que nos coube ter que confrontar nos mais íntimos

Duelos que mantivemos connosco e com os outros.
Do mesmo modo com que nos desprezaram
Mais nos desprezarão pela laudatória fácil

A que nos vão submeter  aquando das exéquias,
A olhar-nos como sempre nos olharam, com os olhos
Trocados sobre nós, por sermos, ainda que mortos,

Melhores do que eles são, que há muito
Estão mortos sem que o saibam. A terra saberá, talvez,
Como tratar-nos, na primazia  de nos receber

Como cadáveres carregados de responsos
Que não mais do que nos desfeiteiam e apoucam,
Por nunca expressarem quanto fomos no despique

Que mantivemos com a vida, a pátria e a língua dela,
Sempre a achar que mais bela não teríamos
Noutro qualquer lugar, tornando-a ainda mais bela,

Se possível em cada dia de labuta incansável e dor extrema.
O esquecimento aguarda-nos, nenhum equívoco
Irá tirar o andaime à verdade nua e crua que nos vela

Depois de mortos, venham, ou não, discursos e fotógrafos
Relembrar quem fomos no imbróglio que foi termo-nos visto
Sitiados pela inveja e a hipocrisia. Correligionários que sejam,

Companheiros da mesma comandita partidária que durante
A vida mantivemos, gente da boa–fé que não lhes vimos
Antes, podem dar-nos missas, sermões salmodiados e capas

De revistas, que sempre ficarão aquém de entender-nos
As ânsias mais secretas, as paixões inconfessáveis, as perdas que tivemos,
As gratas alegrias que fruímos ao olhar o mar

Esmeralda da Foz Velha, a felicidade de ter sempre razão
Sem a ter nunca, o prazer que tivemos no Senhor de Matosinhos
A comprar louça, farturas e enchidos, quando éramos

Dados a esses tráfegos de adultos vulneráveis,
Ensimesmados poetas de um destino em que nos fomos matando
Para aproveitar o agridoce odor da brisa sobre as praias.

Querem de nós é que apodreçamos, que nos leve
A arruada do cortejo lúgubre com os gatos-pingados atrás de nós,
Que se feche a urna e o fogo nos esturre o corpo

Para que os dividendos do nosso óbito lhes dê algum lucro,
Notoriedade, aplauso, sem que a tarefa dê muito trabalho,
No âmbito das empreitadas a que pertencem.

Não nos perdoam o bem da iconóstase, a infância em Gouvães
Ou em Miragaia, a foda imaginária com a florista
Que num dado fim de tarde acinzentado se entreviu

No enquadramento de uma montra em Campo de Ourique,
O gosto pela pintura e pelos livros, a música erudita,
As múltiplas viagens pelo mundo, o desmedido amor a musas várias,

De meia preta e cabelos soltos no descapotável que não nos pertenceu,
Mas permanece ainda em descorçoados poemas rigorosos
Sobre o que é andar a descobrir no mundo amenas dádivas,

Hipóteses magnânimas de sobrevivência.
Não os tolero e aos seus falsos lutos, as gravatas malsãs
Que entre si reeditam como um palimpsesto de mau alfarrabista,

O seu decoro fanático, as suas lágrimas secas, conspurcadas
Do pó dos ministérios, das redações dos jornais, para as quais
Escrevemos sem que isso tenha a mínima importância

Para o que seja o supremo mistério da poesia, sorrindo-lhes embora
Pelo desagravo. Odeia-nos, essa gente, a fátua gente que vai
Aos crematórios ver-nos em faúlhas dispersas pelos ares,

A julgar-nos o método e a inteligência, as opções políticas,
A subestimar tudo o que somos no desregramento geral
Da sociedade, onde a fome é cada vez mais um atropelo

Aos que precisam mas não têm nunca quem os proteja.
Há também os que põem chama no que presumem o que nós possamos ser,
Nem sei se adeleiros, se alfaiates das nossas proporções,

Com a misantropia a calhar-lhes na veneta para que melhor se safem,
A dar-nos pelas costas palmadinhas e a girandolar nos nossos passos com os velhos
Pecados da má fé e da idolatria, por um gesto, um dito, um eco que ressoe

Do desaguisado feitio com que nos vêem calmos mas intranquilos perante os desafios
Do futuro, a saber de que Europa se construiu a Europa e de que ruínas os povos
Tiveram que erguer-se quando não podiam mais viver de joelhos.

Odeia-nos, essa gente, porque não sabe que, além do mais,
A um poeta cabe ser vaidoso dos deuses que escolheu, mesmo que esteja
Errado, mesmo se vier a dialéctica desmenti-lo de tudo quanto disse, jurou

Ou abjurou, ou pôs acima de seus próprios interesses, carreira,
Profissão, livros publicados, ou o que seja. Falam de nós
E ignoram que nunca temos nome, ou que o nome

Que na terra carregamos não nos pertence, ou só pertence a uma certa musa
Inexistente, a quem, no último sopro, pedimos a mão para atravessar
A estrada que vai do coração ao firmamento e não é mais

Que o nosso pesar, a nossa humanidade, o nosso desalento
Por tanto já ter sido o nosso alento mas ter chegado o fim terrível.
Vasculham-nos o espírito e o que dizem não faz qualquer sentido,

Não tem que ver com o canavial da nossa adolescência,
Ou com a intraduzível dificuldade com que nos confrontamos
Na tradução de Dante ou de Villon, o modo impertinente

Com que perscrutamos as aves da nossa solidão, o renque
De árvores que em Mateus foram connosco circundar o palácio
E ver o lago. Tal como eu me calo, quero que se calem para sempre.

Que nos deixem em paz neste momento em que não passamos
De uma oliveira que num monte aguarda a transmigração da alma,
Como se estivesse num desenho enigmático que Escher assinasse,

Ou um verso de um soneto de Camões que na eternidade
Buscasse a perfeição, sabendo como a podemos encontrar
Em qualquer parte se é com o coração que a buscamos

E dela seus escravos nos tornamos. Que nada mais
Digam acerca do que sabem e não sabem sobre nós,
Do bric-à-brac com que cometemos a nossa intemperança,

Actos falhados, emparelhadas rimas, referências ao real e às meninas,
A que borda, a que toca violino na sala ao lado, a que connosco
Visitou o Porto, a que se viu da janela de um comboio

Em Emilia-Romagna quando em trânsito entre Roma e Florença
Acordamos estremunhados e olhamos para fora
A tentar perceber onde estaríamos. Que não chateiem o poeta morto.

Que não abusem mais da paciência e da impaciência de quem ousou
Tentar cifrar o real e a realidade em outra coisa que não fosse
O banal elevado à circunstância e a mediocridade ao único ascetismo

De que nos nossos tempos se é capaz. Que não perturbem
Quem mais não quis do que levar as coisas a um lugar mais alto,
Com severas injunções, dignos reparos sobre o quotidiano

Que numa toalha branca se estendesse e fosse, por uma vez,
Um soneto, uma canção ou uma sextina na lição complexa
Com que cada poema amplia no universo

A nossa redenção e o castigo
De vivermos para morrermos com excessivas perguntas
Sem resposta sobre o que a morte e a existência representam.

Para trás os idiotas, os obscenos, os misóginos, os ministros, os canalhas,
Os literatos, os pulhas, os demagogos, os prosélitos que são como matracas
Que discorrem no orgulho da sua ignorância

Que os faz reproduzir até à exaustão
Lengalengas de almanaque culto,
Requebros diplomáticos de gente do poder acobertada,

Que do poder só sabe ser seu semelhante e desonrar os outros.
Chegada a hora, que o sossego venha.
Que na nossa despedida a paz se escute.



inédito © do poema e da foto: Amadeu Baptista








domingo, 27 de abril de 2014

Vasco Graça Moura 1942-2014







UM POEMA DE VASCO GRAÇA MOURA


AUTO-RETRATO COM A MUSA






1.


vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.

sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda, 
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).

ia a passar fumando 
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza 
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,

palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra

e se entrevê no espelho, 
tingindo as suas águas 
de um dúbio maneirismo 
a que hoje cedo. e fico 
feito de tinta e feio.


2


quem amo o que é que pode 
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado, 
nem guardá-lo num livro,

nem rasgá-lo ou queimá-lo, 
mas pode pôr-se ao lado 
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos 
ou não achar. quem amo

não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago 
e deixo de me ver
e apenas me confundo,

amador transformado 
na própria coisa amada 
por muito imaginar. 
assim nem john ashberry, 
nem o parmegianino,

nem espelho convexo, 
nem mesmo auto-retrato. 
só uma sombra que é 
na sombra de quem amo 
provavelmente a minha.


3


quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço

tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,

nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições

de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.

é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

terça-feira, 22 de abril de 2014

4º. ANIVERSÁRIO



Esta blog faz hoje 4 anos de existência. A todos os visitantes e colaboradores fica o meu agradecimento.

domingo, 20 de abril de 2014

Páscoa


Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Ressureição', óleo s/ madeira, 1501/6






RESSURREIÇÃO

Subo à terra.
Quanto mais subo à terra
mais benfazeja sei que a chuva é,
mais benéfico reconheço o sol que nos criou,
mais benigno o sobressalto
que a vida entrega. Eu sou a árvore,
e é nos elementos que encontro
a essência divina que há em tudo,
o único poder que nos redime.

(in Paixão. Porto, 2003)

© do poema: Amadeu Baptista


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Gabriel Garcia Marquez 1927-2014



'Yo creo que todavia no es demasiado tarde para construir una utopia que nos permita compartir la tierra'

Gabriel Garcia Marquez

terça-feira, 15 de abril de 2014

Fernando Grade



Fernando Grade, poeta convidado



PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO
NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL

Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa vivenda
do Alto Estoril.
Jamais em desértica praia italiana
ou nos olhos de quem passa contente objecto
sexual da Via Venetto
foi aqui nesta rua que desce dos Bombeiros
para a praia da Poça da minha infância.


A casa está rodeada de relva por todos os lados
como se fora um barco de cal
uma cisterna pouco nocturna
e então chegaram os bastardos (foram muitos)
com facas
guizos sangrentos    serpentes amestradas
pela boca
todos devagar diante do espelho que
estava quebrado no meio da erva
e desferiram sobre o corpo de Pier Paolo Pasolini
uma flecha venenosa. Mataram-no a sangue frio.
Ao cair da madrugada.
Numa vivenda do Alto Estoril.


Notícias muitas correram mundo
davam-no como morto algures em Itália:
tinha sido esmigalhado por uma rapariga que vestia de rapaz.
Penso que os jornais e as televisões endoidecem
de uma doença réptil como a magia dos trópicos:
porque Pier Paolo Pasolini morreu e
morre ainda todos os dias aqui
na minha terra (um pouco acima do Tamariz)
numa rua que desce dos Bombeiros
para a doméstica praia da Poça.


Não se esqueçam:
ao sapo coloca-se-lhe um cigarro na boca
até rebentar.

Estoril – Verão 1976
(in livro de poemas ‘Serenata ao Diabo’. Edições Mic, Estoril, Abril de 1978)





OBRAS NOCTURNAS
(PLANO)

“O direito à mentira é a melhor arma de defesa pessoal.”
                                               (Almada Negreiros)

O empreiteiro está autorizado a modificar as paredes interiores onde por
baixo o fogo nasce, mas exijo que os peitoris sejam angelicamente brancos, a pedra
serrada como os dentes das morsas. E os serventes devem deixar voar a alma,
assente em bélica argamassa de cimento e areia.

Mas que cantarias?

A pedra preta e os beijos a utilizar serão de boa qualidade. Prefiro um subtil
isolamento térmico, pode ser com leca, estranhos frutos tropicais e perfumes
austeros (betão celular).

Os pedreiros mais velhos – mestres de ronha, geometria e bagaço – podem
controlar-se nos assobios, nos uivos latinos, perante um magnético, ondulante e
magnífico cu de rapariga sonhador que cruza o chão dos andaimes. No que
respeita a juntas de dilatação, quero falar mais tarde. E os tampos de bancadas?

Aí podemos ser fogosos. Sugiro um assentamento de

tampos de pedra sobre as bancadas da cozinha. Pedra trans-

lúcida. Núbil. Largos tampos onde se acolham fogosas penas

de galinha preta, morangos de Cintra, espargos brancos (sou

doido por espargos amassados no almofariz das tuas mamas), bolo de mel, um
mapa de execução do emboço e reboco interior, três beringelas, um cálice
de jeropiga para tornar mais sádico o puré de castanhas. E sobretudo sentir que
sobre aqueles tampos alargados há-de um dia o teu corpo grácil abrir-se em
roseira para os moscardos que trago comigo. O amor em viagem é para ser feito na
cozinha ou ao sabor das ondas do mar. Na ausência destas, também serve a
banheira atulhada de espumas e champanhe.

            E de noite todos os gestos luzem melhor. Assenta-
-se os bidés com dois furos, munidos com válvula de ruídos
selvagens, sifão inglês e corrente cromados. Prepara-se a
masculina língua de cobra para ser um rodízio nos lábios
carnudos da rapariga a levitar.
            Finalmente, ao abrir do dia, os rodapés serão de
tijoleira cerâmica de barro ruivo, como os teus belíssimos
cabelos em desordem. O cheiro mágico que deixas na á-
gua…
Os quatro quartos, esplêndida a indicação dos porme-
nores, falta apenas a cal, o cheiro da cal a crescer
ao cimo das pernas, e as tuas palavra (em molho tártaro),
palavras densas mas violentas como ranger de pregos.
            Não deixes nunca que te possam esmagar o co-
ração com um pedaço de argila venenosa nu-
ma manta de trapos.

Oeiras e São Julião da Barra – 5 de Julho de 2008

(in livro de poemas ‘Os Mortos Tratam-se Por Tu’. Edições Mic. Estoril, 2011).







O SOM E A PALHA




(Desenho da série ‘Silhuetas Latinas’, de Fernando Grade)





Ouço todas as tardes em Amsterdam
um martelo de plástico
a destruir um muro feito de pedra rija.
Música repassada de água
como os bichos no meio do feno
ou apenas uma romã.
Gesto polaco
algures nas florestas do Norte.
E todas as tardes o martelo vai e
vem sobre o musgo seco.
A pedra, sim, está por baixo e contente,
na sua felicidade de ser pedra
eternamente

Amsterdam – 1971
(in antologia pessoal ’25 Anos de Poesia Antologia 1962-1987’. Edições Mic – Colecção Salamnadra / 12. Estoril, 1988)







UM BARCO DE NÉVOAS VISITOU-ME O SANGUE
(Arte Maior)

Um barco de névoas visitou-me o sangue
e (cada vez mais nocturno) deixou marcas:
são limos, corais, potros, mel de monarcas,
asas de gaivota com que danço o tango.

Corro nesse barco em noites de morango
ilhas onde o sémen se esconde nas arcas,
par’cendo maçãs velhas em vez de farpas,
ó poetas de Bocage a Anto.

Se o barco fugir, perdido no escuro
(o meu olhar seco em forma de pão duro),
venham outras sinas dar-me as mãos em fúria…

Vou ficar no mar, a ver moças de areia,
Coberto de sial nas mamas das sereias,
Farrapo de génio, de sol e luxúria…

(in ‘Os Melhores Sonetos de Fernando Grade’. Selecção de poemas por António Cândido Franco; quatro ilustrações do pintor Artur Bual; Livro comemorativo dos 30 anos de Vida Literária de Fernando Grade – 1962-1992. Edição nº. 72 de Edições Mic/Colecção Salamandra/16. Estoril – Novembro de 1992.)




© dos poemas e do desenho: Fernando Grade




foto de Amadeu Baptista



Fernando Grade nasceu no Estoril (1 de Abril de 1943). Poeta com vasta obra publicada (autor de 30 títulos individuais), artista plástico, cronista, ficcionista e crítico de arte – ‘Jornal de Letras e Artes’, ‘Século Ilustrado’ e ‘Diário de Notícias’. Fez colóquios e recitais de poesia, deu aulas de Literatura Poética Moderna (1977-96), conferências sobre artes plásticas. Inventou o Teatro de Acção (Museu de Angola, Luanda, 1967). Foi um dos criadores e teóricos do Desintegracionismo (1964-65). Foi director da Sociedade Nacional de Belas Artes, membro do seu Conselho Técnico e director-fundador da Associação Portuguesa de Críticos.





quarta-feira, 9 de abril de 2014

Marianne Larsen



POEMAS DE MARIANNE LARSEN


AS MULHERES DOENTES DO PARQUE

Mulheres de pernas delgadas
com cabeleiras
quando vos vejo
onde contraíste a vossa doença
por que levais cabeleiras de cabelo sintético
os vossos pescoços de ave
quem se aproveitou de vós
olhos esbulhagados
sorris quando me vedes
sou vossa
o que quereis que diga
quando passais
imaginai-vos a passar pela cidade
sorris como uma boca demasiado grande sobre o queixo
a vossa dentadura postiça fica-vos demasiado grande
pela noite quando dormis dolorosamente
faz-vos bater os dentes
quem se aproveitou de vós
dar-vos-ia comprimidos celestiais se os tivesse
dar-vos-ia conta de tudo
não caminharíeis sós
brilharia todo o cabelo que penteais sob a cabeleira
    a cada dia
não usaríeis cabeleira
por que a única coisa que dizem os vossos olhos quando os vejo
é uma desculpa embaraçada por vos ter posto tão feias
comprais os semanários e as revistas de moda
eu sei
vi-vos levando-os
fingis que querei comprar e provar os luxuosos anúncios das revistas
nem sequer tendes forças para mudar de cabeleira
para a prender com pequenos ganchos
não vos resta nada onde a prender
sorris
vejo que faltam dentes nas vossas bocas artificias
por que caminhais indispostas pelos parques
despedis odor a operações ainda não cicatrizadas
quem se aproveitou de vós

Ravage, 1973



HOJE

Hoje
        encontrei-me com alguém
                                                        a quem já conhecia
sempre
me disse ele
                    tinha sonhado com
                                                     o meu isolamento
ontem à noite
como
         perguntei-lhe
                               pois olha disse
sonhei
que tinhas uma quantidade
                                             grande
                                                          de gente bonita
ao teu redor
sonhei
           que a tua casa estava viva
                                                    com gente
que entrava e saía
a correr
            pelas portas
                                 subiam e desciam
                                                              pelas escadas
falando e rindo
alegres
            ocupadas
                            em cortar e coser
                                                       vestidos
de todas as cores
para uma festa
                         que se ia celebrar
                                                      essa mesma tarde
                                                                                   imagina
se o isolamento diário
não existisse
                     essas experiências
                                                   oníricas
não ocorreriam
não ocorriam
                        como divina
                                            compensação

Billedtekster, 1974



FÁBULA

Quando as pessoas acordam pela manhã nas suas isoladas células
    familiares
com um estranho sabor de canções de liberdade na boca,
desperta também o seu vazio.
E imediatamente o vazio começa a alegrar-se por ver
as pessoas a desaparecer na obscuridade a caminho das máquinas que
    aguardam
para poder ter os quartos e as coisas da família só para ele.
Espera invisivelmente tenso.
Quando está certo de que todos a mãe e o pai e as crianças
se foram
salta como um duende de uma caixa e põe-se a bisbilhotar e a
mandar. Ninguém sabe quanto perverso é o vazio.
O vazio que se mantém nas casas privadas quando as pessoas saíram.
Mexerica as cartas e os armários das pessoas, prova toda a roupa,
mirando-se e remirando-se em todos os espelhos.
O vazio tem luz verde quando não estamos em casa.
As pessoas odiam o vazio e o vazio odeia as pessoas. O tempo
que são obrigados a permanecer juntos é um tormento. Mas cada um
consome as suas próprias aversões. O vazio consome-as
porque sabe que o espera uma manhã feliz quando as pessoas
desaparecem da sua vista durante todo um dia de trabalho. Mas por que as pessoas
guardam a aversão ao vazio no seu interior, elas
nem sempre podem esperar uma alegra manhã longe dele no escritório
e nas fábricas. Não, mas nas fábricas podem aprender
a estar unidos, e quando estão unidas não notam tanto
o vazio. As pessoas sempre falaram em unir-se para remover
o vazio das suas casas e dos seus empregos.

Handlinger, 1976



Sente-se como um áspero muro de pedra artificial
contra as costas
no entanto nota-se o roçagar suave
das pontas das folhas de uma planta na nuca

um pássaro deve ter voado
através do muro
que me separa dos outros na prisão do mundo

bem dentro da escuridão do muro
impenetrável às vezes
talvez o pássaro tenha perdido uma semente
e teve que deitar raízes

finalmente o dente de leão fez-se tão grande
que pude soprá-lo

Pludselig, 1985



Floresce um espinheiro branco

ruídos de auto-estrada
ao longe

um fiorde pestaneja

uma comunidade carregada de emoção espera
muito dentro do ar um lugar na terra

Pludselig, 1985




NO MUNDO

A mulher trouxe a criança ao mundo.
Deixo-a ficar ali no seu carrinho um par de horas.
Da cozinho não o perdeu de vista durante todo o tempo
do que se passava à criança ali no mundo.

Estalavam guerras.
Os quatro elementos foram transformados em dinheiro.
Desenvolveram-se espécies de existências venenosas.
Florescia o terrorismo de Estado.

Havia uma bomba debaixo do carrinho.
A criança gritou.
Tinha acordado.
A mulher precipitou-se a fazer alguma coisa.

I timerne og udenfor, 1987



SERES HUMANOS

É de manhã.
As perguntas apresentam-se.
Que vão fazer os seres humanos
hoje?

I timerne og udenfor, 1987




PRIMAVERA

Primeiro a manhã.
depois o resto
das tentativas
de se elevar até
a cotovia que voa sobre a cidade.

I timerne og udenfor, 1987



SONDAGEM DE OPINIÃO

Qual é a tua posição relativamente à luz matinal?
Aprovas as direcções do vento?
É correcto que alguém sonhe a cores
ou deveria proibir-se?
Será que podem aguentar o acaso os entes atómicos mundiais
que as brisas e os bandos de pássaros sigam indo e vindo?
Como se posiciona o senhor perante o acónito de inverno?
Poderá considerar-se talvez  um comércio olhar
a perder de vista por cima de um mar?
Há suficientes estrelas no céu?

I timerne og udenfor, 1987



Versão minha e foto - © Amadeu Baptista







Marianne Larsen (1951). Estudou literatura e chinês na Universidade de Copenhaga. Trabalho em várias fábricas e foi enfermeira. O seu primeiro livro de poesia data de 1971, tendo-se convertido numa das poetas comprometidas mais importante do país nessa década. Escreve também prosa. É tradutora. 




sábado, 5 de abril de 2014

Jorge Fallorca 1949-2014

Um poema meu, como simples homenagem a Jorge Fallorca:




UM POEMA PARA JORGE FALLORCA, UM DIA APÓS O SEU DESAPARECIMENTO

Na adolescência o Fallorca era-me um nome estranho
Que eu gostava de ler em poemas e outras dádivas
Incorpóreas que vinham a lume nessa folha
Perversa que já antes do 25 de Abril se publicava
Na rua da Emenda, Subterrâneo 3. O Fallorca era um ser
Magro, quase diáfano, de grande generosidade,
Se é que o silêncio pode ser, alguma vez, generoso,
Que deambulava entre Salgueirais e Lisboa,
Ao contrário de mim, que sempre fui tendo peso a mais,
Sempre fumei até ao apodrecimento e do Alentejo apenas
Gostaria de ter uma mais ampla consciência da bênção
Que me foi dada, ainda que, até agora, a não tivesse
Notado nestes dias permanentes do exílio. Mais tarde,
Ainda que estivéssemos sempre longe um do outro,
Procurámos besouros na planície, habitámos regiões
Onde não era proibido arregimentar flores, perdemo-nos
Na sacrossanta via do envelhecimento e da solidão,
Como instrumentos de pesca, ou de caça, que se têm à mão
Para o que der e vier, mas a que só se dá um uso benigno
Por entrega voluntária. Dizem que apodrecemos
Quando partimos.  Nada mais errado.
O enervamento é um sinal de que a putrefacção
Nunca deixa de funcionar, tal como o assombro
Que o rio Eurotas me provocou quando o vi pela primeira vez,
Por evocação de Helena, a deusa que não cessa e vou perseguindo
Como posso desde que me conheço e encontrei na Grécia
A minha última consolação, o último reduto, essa líquida
Certeza que faz do esquecimento um lancil onde repousar
A cabeça. Com a partida do Fallorca fico mais pobre,
Seja lá o que for a pobreza por alguém ter partido
Depois de ter tomado a vida à colherada, longe, mas perto
Do mundo. Ah, raios partam, nunca mais acaba a chuva
deste Inverno infinito.

© do poema e da foto: Amadeu Baptista




sexta-feira, 4 de abril de 2014

Luís Quintais




LUÍS QUINTAIS, POETA CONVIDADO


Ílion

I
O que se conta em Ílion
não é da perfeição
de hexâmetros,
mas da destruição
da cidade,
da impotência de deuses,
homens, bichos.
Padrões
não modelam
sagazmente
a morte.
Tudo é erro, soberba, acidente.

II
Quando Heitor foi morto por Aquiles
e em ira finalmente desatada
seu corpo arrastado ao redor da muralha de Ílion,
uma mudez percorreu o mundo.
De escândalo se arrepiaram os deuses
e as palavras, antes apetrechadas de asas,
cessaram de habitar o nosso sangue
como chama e sombra
do que profetizámos ser.
Sobre a minha mesa está a segura soberania
da violência insistente, nó
que se derrama como líquido metal, negro desígnio.
Porque morremos? Porque matamos
depois do arrepio dos deuses
e dos símbolos sepultados?
Repõe-se a ferocidade em nós,
equilíbrio dinâmico, proporção
que a si mesma se mede e se mutila.

III
Um cavalo fala,
profetiza a morte
de Aquiles.
Depois o dom da fala
escapa-lhe, e o mundo
arrasta-se,
de ira e desespero
contaminado.
Ao instante
entre a fala
do animal
e a mordaça
irremovível,
chamámos-lhe

um dia eternidade.


© Luís Quintais








Luís Quintais, nasceu em 1968. Poeta, ensaísta e antropólogo. Publicou dez livros de poesia: A imprecisa melancolia (1995), Lamento (1999), Umbria (1999), Verso antigo (2001), Angst (2002), Duelo (2004), Canto onde (2006), Mais espesso que a água (2008), Riscava a palavra dor no quadro negro (2010), Depois da música (2013) e O vidro (2014). Ganhou o Prémio Aula de Poesia de Barcelona, o Prémio PEN Clube Português e o Prémio Fundação Luís Miguel Nava. Vive e trabalha em Coimbra. A sua página pessoal na web pode ser encontrada em: luisquintaisweb.wordpress.com

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Kate Næss



                                                  Poemas de Kate Næss



P.S.
O testamento está escrito a causa clarificada
há que pentear o cabelo cruzar as mãos
põr-se o espelho em frente à boca sem que embacie
mas após o veneno ter deixado de fazer efeito
levantar-me-ei tirarei a roupa e lavá-la-ei
estendê-la-ei na varanda ao sol
para que vejas que estou em casa

Mørkerommet, 1964


Estamos no caminho
de uma nova e melhor realidade
que parece não estar muito longe daqui
É de esperar que esteja
na proximidade do
que entende o coração

Blindgjengere, 1969



O QUE QUEREM OS BARCOS

Seria maravilhoso sair
com a tempestade e a tormenta como amigos
aliados com as fábricas de névoa
o naufrágio vale-lhes
é isso o que querem os barcos
deixar tudo
fundir-se na sua própria ilusão
de segurança
deitar-se com calma no fundo

Blindgjengere, 1969



INVISÍVEL

Nem impressões digitais no papel
nem despedidas entre as linhas
por isso é uma carta em código

se choras sobre o papel
aparecem as palavras
se não
no faz sentido

Blindgjengere, 1969


UMA CASA

Quase sempre estava escuro lá dentro
O espelho não devolvia as imagens
A janela não testemunhava nem festa nem duelo
Numa divisão as cortinas subiam e desciam
Em outra luz se acendia e apagava alternativamente

Nunca houve sinais de altercação na rua
Ainda que o semáforo abri-se a intervalos regulares
raras vezes tocavam à porta

As pausas fluíam de maneira que não se acreditava que fosse possível
quebrá-las
Os gritos das crianças só baixavam um par de degraus nas escadas
O cheiro a fritos fixou-se na fechadura
Não era nem festa nem dia de trabalho

Quando se entrava
viam-se sapatos e botas
Casacos e jaquetas uns em cima dos outros
O espelho estava abarrotado de imagens
As cadeiras cediam sob o peso
O rádio estava sempre aceso
Cuspia reposições
Na Páscoa apartava-se o pintainho amarelo
Ali estava como uma ridícula promessa de sol e primavera
Há anos e anos

Lá estão
Botas, casacos, vestígios
todos os papéis, as segundas intenções que levavas
O teu pesadelo

Esta é a casa do pó
A vivenda que nunca abandonas
Esta é a moldura do quadro
que se retira cuidadosamente do ar
Aqui fica escrito o teu nome
mais belo que qualquer flor
Aqui se nomeia
com línguas mais cortantes que a faca

Quando morres ali dentro
fecha-se um pouco a janela
Um pouco depois chega o Natal
Abrem-se pastas em forma de coração
Há muitas luzes que se apagam então
Não é nem festa nem confrontação
Mas fora
há grandes fogos artificiais no céu

Blindgjengere, 1969



QUARTA-FEIRA

Alguém tinha cabelo negro e olhos azuis
alguém tinha cabelo ruivo e olhos cinzentos:
era frios
alguém levava chapéu azul e casaco azul e vestido
azul com bolas brancas
alguém  tinha posto o melhor fato
aquilo em que pensavam
não eram questões internacionais
ou problemas nacionais
pensavam o amor

alguém tinha talvez cabelo louro mas estudava
alguém tinha cabelo louro mas trabalhava
alguém que tinha o cabelo louro levava um vestido violeta
a alguém que estudava não lhe deixavam servir o café
alguém que trabalhava queria pôr a mesa
aquilo em que pensavam
não era o amor
mas grandes problemas

alguém tinha feições tristes e olhos frios e estava só
alguém era alto e elegante e tinha olhos indiferentes
alguém dava muitas festas e era agradável
e de estatura média e tinha o cabelo negro e vestia bem
alguém que tinha feições triste e estava penteado porque
alguém que era alto tinha desaparecido
e alguém que era de altura média estava um pouco mais
preocupado que o normal
o que estava só
só pensava
e sentia

alguém que tinha o cabelo ruivo e os olhos cinzentos
alegrou-se porque o que estudava se alegrou
e pensava que aquele que talvez tivesse o cabelo ruivo
tinha a impressão de que aquele que levava o melhor fato
pensava no amor
e tinha a sensação de o que tinha feições tristes
lhe foi oferecido um cigarro por alguém que era de estatura média
e trabalhava e tinha o cabelo negro e estudava mas
tinha problemas por ser alta e elegante
e desapareceu com casaco azul e chapéu azul
e era agradável e dava muitas festas mas
tinha uns olhos indiferentes e punha a mesa só
e tinha na realidade cabelo louro e um vestido de bolas brancas
e era solitária e tinha muito dinheiro
não pensava em problemas nacionais
nem em problemas internacionais
mas unicamente em grandes problemas
pensava no amor
pensava
e sentia

Blindgjengere, 1969



NÃO

Encontra uma casa que não tenha número
numa rua que não esteja desenhada no mapa
Sobe a escada que não tenha degraus
Toca a campainha que não toca
Pergunta pelo porteiro que não abre nem fecha

Volta uma folha que só tem anverso
Esmaga uma flor que é uma página de um livro
Encontra um dia que não esteja no calendário
Escreve uma carta a alguém que não tenha endereço
que seja para alguém
que não entenda o idioma
que seja para alguém que não abra o poema
que não tenha entendido
Isto é para ti que existias
e não existes


Blindgjengere, 1969



Versão minha - © Amadeu Baptista






Kate Næss (1938-1987). Nasceu em Oslo. Trabalhou com o teatro universitário. Estreou-se em 192. Traduziu para norueguês poesia alemã, espanhola e norte-americana.