NO DESAPARECIMENTO DE VASCO GRAÇA MOURA
Os que nos vierem fazer o elogio fúnebre
Jamais saberão do que estão a falar
Quando de nós falarem, nem quais as brumas
Que sobre nós pairaram na resiliência
Que nos fez viver, escrever, amar e aturarmos
Tudo o que nos coube ter que confrontar nos mais íntimos
Duelos que mantivemos connosco e com os outros.
Do mesmo modo com que nos desprezaram
Mais nos desprezarão pela laudatória fácil
A que nos vão submeter
aquando das exéquias,
A olhar-nos como sempre nos olharam, com os olhos
Trocados sobre nós, por sermos, ainda que mortos,
Melhores do que eles são, que há muito
Estão mortos sem que o saibam. A terra saberá, talvez,
Como tratar-nos, na primazia
de nos receber
Como cadáveres carregados de responsos
Que não mais do que nos desfeiteiam e apoucam,
Por nunca expressarem quanto fomos no despique
Que mantivemos com a vida, a pátria e a língua dela,
Sempre a achar que mais bela não teríamos
Noutro qualquer lugar, tornando-a ainda mais bela,
Se possível em cada dia de labuta incansável e dor extrema.
O esquecimento aguarda-nos, nenhum equívoco
Irá tirar o andaime à verdade nua e crua que nos vela
Depois de mortos, venham, ou não, discursos e fotógrafos
Relembrar quem fomos no imbróglio que foi termo-nos visto
Sitiados pela inveja e a hipocrisia. Correligionários que
sejam,
Companheiros da mesma comandita partidária que durante
A vida mantivemos, gente da boa–fé que não lhes vimos
Antes, podem dar-nos missas, sermões salmodiados e capas
De revistas, que sempre ficarão aquém de entender-nos
As ânsias mais secretas, as paixões inconfessáveis, as
perdas que tivemos,
As gratas alegrias que fruímos ao olhar o mar
Esmeralda da Foz Velha, a felicidade de ter sempre razão
Sem a ter nunca, o prazer que tivemos no Senhor de
Matosinhos
A comprar louça, farturas e enchidos, quando éramos
Dados a esses tráfegos de adultos vulneráveis,
Ensimesmados poetas de um destino em que nos fomos matando
Para aproveitar o agridoce odor da brisa sobre as praias.
Querem de nós é que apodreçamos, que nos leve
A arruada do cortejo lúgubre com os gatos-pingados atrás de
nós,
Que se feche a urna e o fogo nos esturre o corpo
Para que os dividendos do nosso óbito lhes dê algum lucro,
Notoriedade, aplauso, sem que a tarefa dê muito trabalho,
No âmbito das empreitadas a que pertencem.
Não nos perdoam o bem da iconóstase, a infância em Gouvães
Ou em Miragaia, a foda imaginária com a florista
Que num dado fim de tarde acinzentado se entreviu
No enquadramento de uma montra em Campo de Ourique,
O gosto pela pintura e pelos livros, a música erudita,
As múltiplas viagens pelo mundo, o desmedido amor a musas
várias,
De meia preta e cabelos soltos no descapotável que não nos
pertenceu,
Mas permanece ainda em descorçoados poemas rigorosos
Sobre o que é andar a descobrir no mundo amenas dádivas,
Hipóteses magnânimas de sobrevivência.
Não os tolero e aos seus falsos lutos, as gravatas malsãs
Que entre si reeditam como um palimpsesto de mau
alfarrabista,
O seu decoro fanático, as suas lágrimas secas, conspurcadas
Do pó dos ministérios, das redações dos jornais, para as
quais
Escrevemos sem que isso tenha a mínima importância
Para o que seja o supremo mistério da poesia, sorrindo-lhes
embora
Pelo desagravo. Odeia-nos, essa gente, a fátua gente que vai
Aos crematórios ver-nos em faúlhas dispersas pelos ares,
A julgar-nos o método e a inteligência, as opções políticas,
A subestimar tudo o que somos no desregramento geral
Da sociedade, onde a fome é cada vez mais um atropelo
Aos que precisam mas não têm nunca quem os proteja.
Há também os que põem chama no que presumem o que nós
possamos ser,
Nem sei se adeleiros, se alfaiates das nossas proporções,
Com a misantropia a calhar-lhes na veneta para que melhor se
safem,
A dar-nos pelas costas palmadinhas e a girandolar nos nossos
passos com os velhos
Pecados da má fé e da idolatria, por um gesto, um dito, um eco que ressoe
Pecados da má fé e da idolatria, por um gesto, um dito, um eco que ressoe
Do desaguisado feitio com que nos vêem calmos mas
intranquilos perante os desafios
Do futuro, a saber de que Europa se construiu a Europa e de que ruínas os povos
Tiveram que erguer-se quando não podiam mais viver de joelhos.
Do futuro, a saber de que Europa se construiu a Europa e de que ruínas os povos
Tiveram que erguer-se quando não podiam mais viver de joelhos.
Odeia-nos, essa gente, porque não sabe que, além do mais,
A um poeta cabe ser vaidoso dos deuses que escolheu, mesmo
que esteja
Errado, mesmo se vier a dialéctica desmenti-lo de tudo quanto
disse, jurou
Ou abjurou, ou pôs acima de seus próprios interesses, carreira,
Profissão, livros publicados, ou o que seja. Falam de nós
E ignoram que nunca temos nome, ou que o nome
Que na terra carregamos não nos pertence, ou só pertence a
uma certa musa
Inexistente, a quem, no último sopro, pedimos a mão para
atravessar
A estrada que vai do coração ao firmamento e não é mais
Que o nosso pesar, a nossa humanidade, o nosso desalento
Por tanto já ter sido o nosso alento mas ter chegado o fim terrível.
Vasculham-nos o espírito e o que dizem não faz qualquer
sentido,
Não tem que ver com o canavial da nossa adolescência,
Ou com a intraduzível dificuldade com que nos confrontamos
Na tradução de Dante ou de Villon, o modo impertinente
Com que perscrutamos as aves da nossa solidão, o renque
De árvores que em Mateus foram connosco circundar o palácio
E ver o lago. Tal como eu me calo, quero que se calem para
sempre.
Que nos deixem em paz neste momento em que não passamos
De uma oliveira que num monte aguarda a transmigração da
alma,
Como se estivesse num desenho enigmático que Escher
assinasse,
Ou um verso de um soneto de Camões que na eternidade
Buscasse a perfeição, sabendo como a podemos encontrar
Em qualquer parte se é com o coração que a buscamos
E dela seus escravos nos tornamos. Que nada mais
Digam acerca do que sabem e não sabem sobre nós,
Do bric-à-brac com
que cometemos a nossa intemperança,
Actos falhados, emparelhadas rimas, referências ao real e às
meninas,
A que borda, a que toca violino na sala ao lado, a que
connosco
Visitou o Porto, a que se viu da janela de um comboio
Em Emilia-Romagna quando em trânsito entre Roma e Florença
Acordamos estremunhados e olhamos para fora
A tentar perceber onde estaríamos. Que não chateiem o poeta
morto.
Que não abusem mais da paciência e da impaciência de quem
ousou
Tentar cifrar o real e a realidade em outra coisa que não
fosse
O banal elevado à circunstância e a mediocridade ao único
ascetismo
De que nos nossos tempos se é capaz. Que não perturbem
Quem mais não quis do que levar as coisas a um lugar mais
alto,
Com severas injunções, dignos reparos sobre o quotidiano
Que numa toalha branca se estendesse e fosse, por uma vez,
Um soneto, uma canção ou uma sextina na lição complexa
Com que cada poema amplia no universo
A nossa redenção e o castigo
De vivermos para morrermos com excessivas perguntas
Sem resposta sobre o que a morte e a existência representam.
Para trás os idiotas, os obscenos, os misóginos, os ministros, os canalhas,
Os literatos, os pulhas, os demagogos, os prosélitos que são
como matracas
Que discorrem no orgulho da sua ignorância
Que os faz reproduzir até à exaustão
Lengalengas de almanaque culto,
Requebros diplomáticos de gente do poder acobertada,
Que do poder só sabe ser seu semelhante e desonrar os outros.
Chegada a hora, que o sossego venha.
Que na nossa despedida a paz se escute.
inédito © do poema e da foto: Amadeu Baptista