POEMAS DE HALFDAN RASMUSSEN
FOME
O caiaque ressoa como um mar aberto, sem gelo.
A faca soa a vermelho. Nas frias estrias do rifle
da fome não se abre qualquer asa.
O arpão aponta à minha esquálida mulher
e vê uma foca atrás da sua enrugada pele.
Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962
OLHO DE FOCA
Olha-te. Tenta-te perigosamente
para que te acerques.
Como o abismo profundo.
Como a água escura.
Rodeia-te
e observa-te
da fronteira do silêncio.
Olha-te. Absorve-te lentamente bebendo-te
até que o teu olho vê
o que eu tranquilamente vejo.
Fecho-me em torno de ti.
Transformo-te.
E não te deixarei nunca mais.
Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962
FIGHT
Lançar. Um tom no ar.
A linha que goteja fica tensa.
O tranquilo perfil vespertino da montanha.
A calma, profunda como um suspiro.
Ritmicamente tentador corre o carreto.
E como um músculo na escuridão
sentes o salmão. O teu coração pulsa.
Picou!
Apenas o sussurro do rio e do sangue.
O ritmo glorioso no corpo,
como se o teu coração fosse um brilhante peixe de prata
lutando por se libertar.
Procuras até no mais profundo.
Sobes de novo como uma sombra.
Ouves por trás da cor a melodia de outra dor.
És um peixe na corrente. Estás preso
invisivelmente à correnteza cantante nervo delgado
do destino. Uma força domada
em batimentos de tambor de água.
Saltas com o anzol nos lábios
através de uma chuva de estrelas.
Levam-te as ondas de dor crepuscular
até à margem.
Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962
ROSTO
Os largos invernos. Neve. Frio. Escuridão.
Uma rede de vestígios de trenós. Branca solidão.
Torres de gelo que perfuram o céu.
Abismos onde o dia luta com a sombra.
Pesos que levitam. Calma que colapsa.
Aguaceiros de luz na escuridão onde dorme a erva.
O espaço celeste, uma gota de som que se parte.
Nuvens de pássaros. Cores, Paisagens à deriva.
Sinal sobre sinal no teu rosto.
Escritura da vida.
Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962
BANCO DE PEIXES
Calma envolta em claridade minguante.
Ritmo.
Signos que sempre são chave.
Imagens fugazes.
Titubeante como uma música
de sombras redimidas.
Formas esquivas
que nada representam.
Desenhos a caminho de novos desenhos.
Sonhos.
Pressentimentos efémeros
apagados por ventos e correntes.
Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962
SARDINHA
Sonhei partir uma vez. Até ao fundo
esmagada por cinco irmãs decapitadas
que a cada dia me asseguravam que para um peixinho
uma lata era mais segura do que o Atlântico.
Pensei em muitas coisas estranhas. Contava
contos e fábulas às outras.
Cantava o mar e o grande banco
de peixes da via láctea sob o céu.
Tratei de as despertar. Mas todas
dormiam profundamente em espesso azeite
e estavam muito contentes com a sua situação
e com a ordem total e mundial da folha-de-flandres.
Sonhei que S. Sebastião ia voltar
saindo da bruma matinal do Atlântico
para libertar todas as sardinhas do mundo
com o seu grande abre-latas dourado.
Ansiava pelas águas profundas. Pressionaram-me
até me converterem numa acanhada sardinha conformada
cuja espinha dorsal se foi assemelhando à das outras,
débil e lassa como um aborto de minhoca.
Já não sonharei mais com o mar. Serenamente
aceitei esta igreja de lata
onde posso descansar tranquila entre irmãs
enquanto esperamos os últimos óleos.
Med solen i ryggen, 1963
NÃO ATRAIÇOEIS O HOMEM
Não atraiçoeis o homem! gritaram
Mas o homem, quem é?
É talvez aquele que geme na noite
na terra de ninguém?
É aquele rapaz que sangra
pelas nossas derrotas?
Ou o menino que morre abrasado
pela vida?
Acorremos com armas ensanguentadas
ao nebuloso lago do crepúsculo. – –
Não atraiçoareis o homem! gritaram.
Matar ou morrer!
Aftenland, 1969
SOBRE A PERFEIÇÃO
Cada vez que vou escrever o poema perfeito,
e é algo que tento uma e outra vez,
a mão põe-se a tremer e ataca-me o reumatismo
e a esferográfica faz borrões.
E quando estou tranquilo e se aplaca o reumatismo
e a minha esferográfica escreve persistentemente,
a minha mulher entra a cada dois minutos
a perguntar se terminei esse poema.
E quando por fim logro redimi-lo
através de dores e ansiedades,
falta esse tremor, esse reumatismo e esses borrões
que tem o perfeito, se é que existe.
Tosserier i udvalg, 1981
SOBRE O TORMENTO DO POETA
O papel branco é tão branco como a neve
e eu estou de um humor do mais negro
porque tive uma excelente ideia destinada
a um poema sobre uma donzela da Avenida da Esperança
e um domador de leões ruivo.
Mas agora a ideia desapareceu, perdi-a,
e o domador está sentado nervoso e abatido
porque que raio pode ele fazer se Eu não sei
o que se faz com uma donzela na Avenida da Esperança.
Tosserier i udvalg, 1981
SEMELHANÇA
Só. Num quarto.
Num campo de batalha. Morto
por projécteis ou palavras.
Torturado. Queimado.
Quem sabe a quem alcança o destino?
Procuram-te
perseguem-te muitas sombras
visto e conhecido.
Imposto ou escolhido por ti mesmo.
Não há fronteira
entre afogado e enforcado.
O sangue ardente
conhecerá o mesmo frio
sejas servo
vencedor ou perdedor
malvado ou bondoso.
Fremtiden er forbi, 1985
Versão minha - © Amadeu Baptista
Halfdan Rasmussen (1915-2002). Nasceu em Copenhaga. Estudou em diversas Universidades Populares e trabalhou em diferentes ofícios, tendo sofrido da chaga do desemprego. Colaborou em revistas sindicais e socialistas. Estreou-se com um livro de poemas, Soldat eller menneske (Soldado ou ser humano), durante os anos da ocupação alemã, poemas da resistência. Escreveu também livros para crianças e poemas humorísticos, rimados, muito pessoais, intitulados Tosserier (Tontices).
Sem comentários:
Enviar um comentário