quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Lasse Söderberg




                                                POEMAS DE LASSE SÖDERBERG


PAUL ÉLUARD IN MEMORIAM

Pode o cântaro ser mais belo que a água?
Pode a morte de um poeta iluminar o mundo?

O dia era de nácar, foi o dia mais belo
daquele inverno. Um cavalo de luz ondulou o céu.
Chegou uma carta do vazio
e o sino da neve estalou com nítida sonância.


Escuta o sussurro das palavras louras nos lábios do poema!
Escuta as suas pulsações, a força elementar da fonte.
Uma luminária de palha move-se pelo nosso jardim encantado:
é alguém que estuda minuciosamente heráldica de frutos.

Água celeste, estação de metro, subúrbio oprimido como um peito!
Alguém morreu em Paris, a cidade de múltiplos nascimentos,
sob o sol da esperança, sob um amor desintegrado.
Um cão doente ronda pelo umbral da porta.

Vejo-te: ancião de ideias luminosas, nervoso
e transparente, vejo-te a desfazeres-te em pó,
vejo-te a desvanecer-te como um ténue fumo ou neve,
uma nuvem de neve negra em noites brancas.

Akrobaterna, 1955



SOBRE A ARTE DE MANEJAR UM CADÁVER

Primeiro transportaram o cadáver
de helicóptero de um despovoado,
depositaram-no meio nu numa pia
para que todos o vissem.

Fotografaram os restos mortais.
Depois enterraram-nos algures
para que não se movessem,
para que ninguém os visse.

Mas não os vendo ninguém cresceu o medo
como o cabelo e as unhas aos mortos.
Desenterraram o cadáver e cortaram-lhe um polegar
como prova da sua morte.

Depois queimaram o corpo
e enterraram as cinzas num lugar incerto
para que não se sublevassem
e formassem um exército invisível.

Passará muito tempo e o medo
todavia enterrará e desenterrará
o cadáver que comanda uma guerra tenaz
em Santa Cruz e outras paragens.

Rós for en revolution, 1972



PERGUNTAS SOBRE A HISTÓRIA

I

Quando já não há tinta,
deve-se escrever com sangue?

Quem pode obrigar a falar o mexilhão
ou a abandonar o seu sussurro ao búzio?

É verdade que as condecorações
abandonam os generais quando morrem?

E que os pássaros negros
já não podem orientar-se sem bússola?


II

É mais humano o verdugo
por ter um nome risível?

Chegarão alguma vez os répteis
a ser amestrados para desfilar?

Por que não se podem as mortalhas converter em bandeiras
quando é tão frequente o inverso?

E, a propósito, como é possível que
até o caminho que mais recto se traça

apresente com tanta frequência veleidades circulares?

Nerudas aska, 1987



A ERVA DE MANÁGUA

I

Um rebanho de ruínas pastando
em metade da cidade, pareceu-me.

A erva crescia ali como o cabelo dos mortos.
Tinha a sua história a contar.

Sentei-me a escutar
como se pela primeira vez.

Aproximaram-se crianças com as mãos vazias,
privadas dos seus pais, escuros.
Pareciam a erva queimada
sob a qual cresce a nova.
Ali havia também homens e mulheres,
silenciosos, sérios como raízes.

E todos escutavam, pareceu-me,
como se pela primeira vez.



II

O lugar em que me encontrava
era o intervalo coberto de erva,

o ponto entre duas épocas,
ambas existentes,

uma sem começo real,
outra sem fim real

e do mesmo modo me encontrava eu
no meu próprio ponto de ruptura

em que estava dividido em duas partes,
as duas como estranhas uma da outra

e no entanto vivas no mesmo alento.
Mas aqui, entre o nascido e o por nascer

era um testemunho incerto,
eu mesmo erva entre as ruínas.


III

O que nada é, será.
O que nada foi, é.

Sussurros, rabiscados com pressa
na erva, regressaram à sua penumbra

Por toda a parte havia seixos
como excrementos deixados pelas ruínas,
que lentamente se iam distanciando,
pareceu-me, enquanto os homens,

as mulheres, as crianças permaneciam
sem mover-se, inflexíveis

como a grade do silêncio
armados de doçura.

A cinza que vi nas suas mãos
era o princípio do país.

Slottet la Coste ligger i ruiner, 1990



MOEDA DE COBRE
para Octavio Paz

(Gaivotas)

Enquanto falamos
erram as gaivotas
o vento do sudeste.

Sexton dikter, 1991




Versão minha - © Amadeu Baptista



Lasse Söderberg (1931). Nasceu em Estocolmo. As largas temporadas passadas em França e Espanha reflectem-se na sua poesia, profundamente influenciada pelo surrealismo francês e pelos poetas da «geração de 27». Tradutor e introdutor na Escandinávia das literaturas de língua castelhana. Actualmente, participa em espectáculos que fundem poesia, música e teatro. Dirige a revista Tärningskastet.

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