POEMAS DE LASSE SÖDERBERG
PAUL ÉLUARD IN MEMORIAM
Pode o cântaro ser mais belo que a água?
Pode a morte de um poeta iluminar o mundo?
O dia era de nácar, foi o dia mais belo
daquele inverno. Um cavalo de luz ondulou o céu.
Chegou uma carta do vazio
e o sino da neve estalou com nítida sonância.
Escuta o sussurro das palavras louras nos lábios do poema!
Escuta as suas pulsações, a força elementar da fonte.
Uma luminária de palha move-se pelo nosso jardim encantado:
é alguém que estuda minuciosamente heráldica de frutos.
Água celeste, estação de metro, subúrbio oprimido como um peito!
Alguém morreu em Paris, a cidade de múltiplos nascimentos,
sob o sol da esperança, sob um amor desintegrado.
Um cão doente ronda pelo umbral da porta.
Vejo-te: ancião de ideias luminosas, nervoso
e transparente, vejo-te a desfazeres-te em pó,
vejo-te a desvanecer-te como um ténue fumo ou neve,
uma nuvem de neve negra em noites brancas.
Akrobaterna, 1955
SOBRE A ARTE DE MANEJAR UM CADÁVER
Primeiro transportaram o cadáver
de helicóptero de um despovoado,
depositaram-no meio nu numa pia
para que todos o vissem.
Fotografaram os restos mortais.
Depois enterraram-nos algures
para que não se movessem,
para que ninguém os visse.
Mas não os vendo ninguém cresceu o medo
como o cabelo e as unhas aos mortos.
Desenterraram o cadáver e cortaram-lhe um polegar
como prova da sua morte.
Depois queimaram o corpo
e enterraram as cinzas num lugar incerto
para que não se sublevassem
e formassem um exército invisível.
Passará muito tempo e o medo
todavia enterrará e desenterrará
o cadáver que comanda uma guerra tenaz
em Santa Cruz e outras paragens.
Rós for en revolution, 1972
PERGUNTAS SOBRE A HISTÓRIA
I
Quando já não há tinta,
deve-se escrever com sangue?
Quem pode obrigar a falar o mexilhão
ou a abandonar o seu sussurro ao búzio?
É verdade que as condecorações
abandonam os generais quando morrem?
E que os pássaros negros
já não podem orientar-se sem bússola?
II
É mais humano o verdugo
por ter um nome risível?
Chegarão alguma vez os répteis
a ser amestrados para desfilar?
Por que não se podem as mortalhas converter em bandeiras
quando é tão frequente o inverso?
E, a propósito, como é possível que
até o caminho que mais recto se traça
apresente com tanta frequência veleidades circulares?
Nerudas aska, 1987
A ERVA DE MANÁGUA
I
Um rebanho de ruínas pastando
em metade da cidade, pareceu-me.
A erva crescia ali como o cabelo dos mortos.
Tinha a sua história a contar.
Sentei-me a escutar
como se pela primeira vez.
Aproximaram-se crianças com as mãos vazias,
privadas dos seus pais, escuros.
Pareciam a erva queimada
sob a qual cresce a nova.
Ali havia também homens e mulheres,
silenciosos, sérios como raízes.
E todos escutavam, pareceu-me,
como se pela primeira vez.
II
O lugar em que me encontrava
era o intervalo coberto de erva,
o ponto entre duas épocas,
ambas existentes,
uma sem começo real,
outra sem fim real
e do mesmo modo me encontrava eu
no meu próprio ponto de ruptura
em que estava dividido em duas partes,
as duas como estranhas uma da outra
e no entanto vivas no mesmo alento.
Mas aqui, entre o nascido e o por nascer
era um testemunho incerto,
eu mesmo erva entre as ruínas.
III
O que nada é, será.
O que nada foi, é.
Sussurros, rabiscados com pressa
na erva, regressaram à sua penumbra
Por toda a parte havia seixos
como excrementos deixados pelas ruínas,
que lentamente se iam distanciando,
pareceu-me, enquanto os homens,
as mulheres, as crianças permaneciam
sem mover-se, inflexíveis
como a grade do silêncio
armados de doçura.
A cinza que vi nas suas mãos
era o princípio do país.
Slottet la Coste ligger i ruiner, 1990
MOEDA DE COBRE
para Octavio Paz
(Gaivotas)
Enquanto falamos
erram as gaivotas
o vento do sudeste.
Sexton dikter, 1991
Versão minha - © Amadeu Baptista
Lasse Söderberg (1931). Nasceu em Estocolmo. As largas temporadas passadas em França e Espanha reflectem-se na sua poesia, profundamente influenciada pelo surrealismo francês e pelos poetas da «geração de 27». Tradutor e introdutor na Escandinávia das literaturas de língua castelhana. Actualmente, participa em espectáculos que fundem poesia, música e teatro. Dirige a revista Tärningskastet.
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