terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Um poema de 1997 para 2014




W.H. AUDEN FICCIONA SOBRE CHRISTOPHER ISHERWOOD

1.
Ignoro o paradeiro de Christopher Isherwood,
há muito que o outro lado do muro o fascinava,
muitas vezes me perguntou que poderia pensar-se
da separação das águas e quais seriam as melhores embarcações
para atravessar o mar. Não raro o observei a sondar
o infinito, cada noite dedicada a uma estrela
no firmamento, enquanto fazia rodar a caneta
entre os dedos a uma velocidade inverosímil, uma rotação
que me deixava atónito. – " Wystan, você acredita
na grande máquina? ". E ficava
a olhar além do vazio, além do azul, como se a existência
fosse bem mais intensa que o tédio que nivela os fins de tarde
e a dúvida cravada no seu rosto,
o móbil da sua vida. – " Wystan,
não tenho notícias de Manchester há cinco meses, é bem
provável que tal sítio do mundo já não exista." E olhava
o verde brilhante que inundava a janela
do nosso quarto comum. Esta manhã saiu cedo, andou sobre
a carpete para não me despertar, mas pressenti-o
a saltar da cama cautelosamente e a fechar a porta
com suave gentileza. – " Wystan, hoje não teremos
um pequeno-almoço delicioso ", disse, entre-dentes,
e partiu para sempre ainda mais só do que me habituei a vê-lo,
recordando, talvez, Manchester ou alguma escuna branca
que tivesse sonhado nessa mesma noite e o tivesse levado
mais longe, a regiões mais vastas,
do que esta infernal
preparação para o precário mercado de commodities.


2.
Vim a saber que lhe bateram com uma correia de transmissão
quanto tinha oito anos e que sempre que aceita um desafio
é como se voltasse a esse tempo de surda revolta. Compreendo
que se sinta infeliz, mais a mais tendo outras pérfidas
recordações a persegui-lo, vitimou-o a morte da avó com essa tristeza imparável,
onde entra irradia uma premonição de algo que irá desabar
e uma corrente de ar gelado que é impossível conter.
Também soube que perdeu os pais muito cedo, num incêndio, ao que creio,
essas tragédias abatem-se sobre nós e não nos atrevemos a olhar
para trás sem que algo estale dentro da cabeça, uma explosão
no espírito que faz com que inclinemos a cabeça para o peito
e uma pequena barragem se levante para a lágrima que ameaça chorar
enquanto o estremecimento atravessa o corpo e se prolonga
além do olhar com o poder de transfigurar a realidade e nos devolver
a esse passado avassalador onde tudo aconteceu. Presumo
que o fascínio tem desses sedimentos, as marcas indeléveis
acossam a memória e tudo é irremediável, fugaz
mas irremediável, uma fita de imagens lentíssimas
desenrola-se sob os olhos,
amplia-se na distância do tempo, é uma dor mais forte
que não dói já, mas há-de continuar a doer além do imaginável,
além dos ossos,
além da morte,
além do feroz instinto de prevalecer.


3.
Estou agora professor de poesia em Oxford
e o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar,
se me olho ao espelho coro de vergonha
pela traição a que me submeti,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar.

A poesia não me desobriga da vida
mas o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar,
desde a infância que me comovo com as estrelas,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar.

Onde quer que vá neste espaço exíguo lembro-me
que o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar,
ele estava fascinado pelo que havia além do muro,
o meu amigo Christopher Isherwood flutua no espaço interestelar.


(in Desenho de Luzes, Amigos de Azertyuop, Corunha, 1997)







Poemas e fotos - © Amadeu Baptista

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