POEMAS DE ROLF JACOBSEN
METAFÍSICA DA CIDADE
Sob as grades das sarjetas,
sob os escuros porões manchados,
sob as húmidas raízes da avenida das tílias
e o céspede dos parques:
Os fibrosos nervos dos cabos telefónicos.
As veias ocas dos tubos do gás.
Cloacas.
Dos altíssimos Alpes humanos do este,
das fachadas do chalés escondidas atrás das cercas do oeste
– as mesmas cadeias invisíveis de ferro e cobre
nos aprisionam.
Ninguém pode ouvir a crocante vida dos cabos telefónicos.
Ninguém pode ouvir a tosse doentia das tubagens do gás no abismo.
Ninguém pode ouvir como estrondeiam o lodo e o fedor das cloacas
nas centenas de quilómetros de escuridão.
As vísceras blindadas da cidade
trabalham.
Mas acima à luz do dia tu estás a dançar com chamejantes
pés sobre o asfalto e levas seda sobre o olho
branco do umbigo e casaco novo à luz do sol.
E em cima à luz em algum lugar estou a ver como
a alma azul dos cigarro revoluteia como um anjo casto
através da folhagem do castanheiro até à vida eterna.
Jord och jern, 1933
PAVANA
A pavana, essa estranha dança de pavão real
que a infanta Isabel dançou
com D. Juan Fernandes de Castela
na última noite antes da morte ter visitado o alcácer
– pálida como um cadáver e já marcada por gélidos dedos
mas com os enfeites do pavão real e com os estranhos
passos rígidos como se já estivessem mortos
– a mesma dança que bailou a rainha de Espanha
com o coração carregado de medo e semi-petrificada
pelo pesado brocado, pompa e etiqueta
como se um duro esmalte lhe envolvesse o selvagem coração,
– é talvez a mesma dança que baila o mar
com as nuvens ali ao longe, este jogo apagado
mudo com as caudas de pavão real das nuvens
e os passos abruptos do mar em pesado brocado
até à deserta abóbada celeste – assim dança o mar
uma desolada dança com as nuvens ao ritmo de uma música apagada.
Hemmelig liv, 1954
A VELHICE
A mim agradam-me os mais velhos.
Estão aí sentados e olham-nos e não nos vêem
e muito têm com o seu,
como os pescadores na ribeiras dos grandes rios,
imóveis como pedras
na noite estival.
A mim agradam-me muito os pescadores nas ribeiras dos rios
e aos velhos e aos que saem à rua após uma longa enfermidade.
Têm algo nos olhos
que o mundo já não vê
os velhos, como convalescentes
cujos pés ainda não são fortes o bastante para os suster
e com a face pálida como depois da febre.
Os velhos
que voltam a ser eles mesmos lentamente
e se dissolvem lentamente,
como o fumo, imperceptivelmente transformam-se
em sonho
e luz.
Hemmelig liv, 1954
O ANJO DA GUARDA
Sou o pássaro que bate na tua janela de manhã
e o teu acompanhante, o que não podes conhecer,
as flores que resplandecem para o cego.
Sou a coroa do glaciar sobre os bosques, a deslumbrante,
e as sonoras vozes da torre da catedral.
A ideia que cai de repente sobre ti em pleno meio-dia
e te enche de estranha felicidade.
Sou alguém que amaste há muito tempo.
De dia caminho ao teu lado olhando-te sem poder tirar os olhos
de cima
e ponho a boca sobre o teu coração,
mas tu não o sabes.
Sou o teu terceiro braço e a tua segunda
sombra, a branca,
para a que não tens coração
e que nunca te poderá esquecer.
Hemmelig liv, 1954
ESPESSO NEVÃO
Um imenso nevão enche as ruas pela manhã
como uma espécie de loucura na luz
– alguém trata de tocar flauta com mãos amputadas
e de tapar os semáforos com lenços rendados
mas fracassa como toda a tentativa
de mudar a nossa visão do mundo resulta ela mesma
transformada
em resíduos de petróleo e urina que desaparecem na sarjeta
Porque de nada servem borboletas cloroformizadas
ou passar a esponja lentamente sobre uma imagem que é maligna
quando a mão treme e duvida de si mesma
e a imagem é de ferro.
Stilheten efterpå – – , 1965
LENTAMENTE
Imagens de terras imensas,
remoinhos de areia, céus de bronze
permanecerão até ao fim dos tempos, o vento
levanta o pequeno grão de areia até o deixar sobre uma pedra,
a chuva leva-o.
Por isso o rosto da terra entre as constelações das estrelas
está coberto de esquecimento – lenta
como as pedras é a acção de Deus para connosco,
um dia chegará como uma rosa – um dia como um fogo.
Tudo tem a sua hora.
Dentro de mil anos
terá chegado o caracol à árvore.
Vejo uma velha chuva caminhar inclinada sobre a terra do entardecer
procurando com as suas ténues mãos as coisas esquecidas
pelas quais ninguém se preocupa – o silêncio entre os tufos da
erva
meias palavras, fragmentos de perdas, pensamentos
que não pensou quase ninguém, os caminhos
silenciosos de erva e sonho que levam
de um tempo a outro.
Onde encontramos nós agora
o que possa unir tudo o que foi disperso.
O caminho entre as estrelas, os caminhos da bússola
ou as linhas das mãos de todas as raparigas
que se parecem ao vento entre as rosas.
Porque é tarde
logo levará o rio mais imagens,
as ladeiras das montanhas, reflexos de casas, um rosto amado
leva-o para o mar. Tudo se recolherá
sem uma palavra e o planeta inclina
serenamente o seu ombro até à noite e ao dia.
Em algum lugar o vento leva toda a manhã sussurrando
nos bosques,
em algum lugar o contorno de uma montanha entra
imperceptivelmente na noite.
Stilheten efterpå – – , 1965
O SILÊNCIO DE DEPOIS
Trata de acabar já
com as provocações e as estatísticas de vendas,
os pequenos-almoços dominicais e os fornos de incineração,
de acabar com os desfiles de moda e os horóscopos,
os desfiles militares, os concursos de arquitectura
e as três fileiras de luzes de tráfego.
Deixa-o e acaba
com os preparativos para a festa e as apostas
de oito múltiplas,
famílias do índice de consumo e análise de mercadotecnia,
porque é tarde,
é demasiado tarde,
acaba já e volta para casa
ao silêncio de depois
que te recebe como uma injecção de sangue quente no rosto
e como os trovões do caminho
e como a vibração de sinos potentes
que fazem tremer o tímpano
porque as palavras já não existem,
já não há mais palavras,
de agora em diante tudo falará
com as vozes de pedras e de árvores.
O silêncio que vive na erva
na parte interior de cada tufo
e nos espaços azuis entre as pedras.
O silêncio
que segue os tiroteios e o trinar dos pássaros.
O silêncio
que cobre o morto com uma manta
e espera na escada que todos se vão.
O silêncio
que pousa nas tuas mãos como um passarinho,
o teu único amigo.
Stilheten efterpå – – , 1965
BOSQUE DE ATENAS
Sobre os telhados das cidades há extensas planícies.
Lá se refugiou o silêncio quando já não havia lugar para ele nas ruas.
Agora segue-o o bosque.
Tem que estar ali onde se encontra o silêncio.
Árvore após árvore formando estranhos bosquezinhos.
Não enraízam bem porque o solo é demasiado duro.
Cresce um bosque incomum, um ramo para este,
e outro para oeste. Até que parece uma cruz. Um bosque
de cruzes. E o vento pergunta
– Quem jaz aqui
nestas profundas tumbas?
Pusteøvelse, 1975
TEMPO SUFICIENTE
Tempo suficiente.
O homem do bastão branco tem tempo de sobra. É cego.
Conhece o mundo por dentro. As marteladas
na parede e os flocos de neve no cabelo quando chega o outono.
Sabe de que são feitos os sonhos.
Não pertence à noite nem ao dia.
Pela tua voz sabe se o teu coração está em paz.
A luz põe-lhe um dedo sobre a boca.
Não o questiones. Sabes mais do que tu.
Há um mundo mais além dos olhos.
Maior que o nosso. É o seu.
Se te dá a mão sente os ossos
como asas de pássaro.
Pusteøvelse, 1975
VOLTAI-VOS PARA OUTRO LADO – PENSAI EM OUTRA COISA!
– Voltai-vos para outro lado. Pensai em outra coisa.
Pensai em tudo o que podeis comprar. Pensa no teu carro.
Em tudo o que diz o anúncio. Coisas deliciosas.
Não vos ponhais a olhar para aqui a todo o instante. Voltai-vos.
Pensai em outra coisa, dizemos-vos.
Mas bem, voltai-vos para outro lado já. Olhai os escaparates.
Maravilhas. Últimas novidades em todas as secções.
Casacos de pele de foca. Não vos agradam? Roupas novas.
Em breve será primavera. Pensai em super raparigas.
Pensai no vento. Bem, mas dai a volta de uma vez.
Aqui não pedimos testemunhos.
Vai ao cinema esta noite ou passa por uma igreja,
se és disso. Participa do canto dos fiéis,
sê como os demais, caramba.
Agora escuta. Pela última vez. Não olhes para aqui.
E pensa noutra coisa. Já to dissemos
– aqui não queremos público.
Compra um grosso jornal ou uma revista.
Olha todas essas imagens a cores e recorda que esta é a última
advertência.
– Assim, muito bem. Óptimo. E agora vamos falar de outra coisa.
Não, caramba, não. Não te movas.
Ou disparamos.
Tenk på Noé annet, 1979
DE REPENTE, EM DEZEMBRO
De repente. Em Dezembro. Estou na neve enterrado até aos joelhos.
Falo contigo e não me respondes. Estás calada.
Minha amada, foi assim que aconteceu. Toda a nossa vida,
o sorriso, as lágrimas e a coragem. A tua máquina de costura
e todas aquelas noites de trabalho. As nossas viagens finalmente:
– sob a neve. Sob a parda coroa.
Tudo passou com tal rapidez. Dois olhos que olhavam fixos. Palavras
que não compreendia, que tu repetias uma e outra vez.
E de súbito nada mais. Dormias.
E agora jazem aqui. Todos os dias, as noites de verão,
as uvas de Valladolid, o pôr-de-sol em Nemi
– sob a neve. Sob a parda coroa.
Velozmente como quando se apaga um interruptor
se esfumam atrás dos olhos as marcas de todas as imagens,
se apagam do quadro da vida. Ou não?
O teu vestido novo, o meu rosto e a nossa escada
e tudo o que levavas para casa. Desapareceu tudo
– sob a neve. Sob a parda coroa?
Meu amor, onde está agora a nossa alegria,
as mãos gentis, o sorriso jovem,
a coroa de luz do cabelo sobre o teu rosto, a tua coragem
e essa abundância de vida e da coragem?
– Sob a neve. Sob a parda coroa.
Companheira atrás da morte. Leva-me contigo.
Os dois juntos aí em baixo. Vejamos juntos o desconhecido.
Aqui tudo está deserto e o tempo escurece.
As palavras são tão escassas e ninguém as escuta já.
Minha amada, adormecida Eurídice
– Sob a neve. Sob a parda coroa.
Nattåpent, 1985
Versão minha - © Amadeu Baptista
Rolf Jacobsen (1907-1994). Nasceu em Oslo. Jornalista. Publicou o seu primeiro livro em 1933. Desde então, publicou onze livros de poesia. É um dos maiores poetas noruegueses do séc. XX. Grande renovador da linguagem poética, incorporou na poesia o que o desenvolvimento deu à vida moderna.
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