POEMAS DE KARIN BOYE
PEDI UMA COISA
Pedi uma coisa
profunda sinceridade
– o que foi a morte de muitos – .
Mas pedi no entanto uma coisa mais,
uma que só se concede aos fortes:
o mutismo do coração.
Moln, 1922
A UM AMIGO
Com as asas estendidas voa a águia pelos largos espaços.
Onde ela desliza o ar rarefeito torna difícil a respiração.
No ar desolado das montanhas invernais está muito só.
O crepúsculo e o frio são o seu séquito –
a sua única alegria,
a alegria de se sentir a voar com asas poderosas.
Assim no alto voas nos mais vazios céus invernais,
valente como a águia graças a uma vontade de relâmpago.
Renunciaste à busca da felicidade, elegeste caminhos
escarpados, que a nós, os débeis, nos assustam.
Que desesperado caminhas,
caminhas com passos rápidos e ágeis como o vento.
O meu mundo parece-se ao teu, e no entanto não se lhe assemelha.
Rindo-se dança a minha estrela entre mistérios estelares.
Á tua alegria cinzenta e férrea, amo-a na mais profunda distância.
Deixa-me caminhar a teu lado
e penetrar com o olhar
no teu mundo invernal e a tua vontade de relâmpago.
Gömda land, 1924
O DESTRUIDOR
A mim guia-me um olhar de serpente, fria, cruel,
olha-me fixamente da mais distante distância obrigando-me a ir
ao seu encontro
dirige os meus passos na mais próxima proximidade,
mantém-me prisioneira num medo esmagador,
aprisiona-me a vontade…
Quem deu à serpente a sua terrível beleza,
a atracão pelo abismo,
a doçura da morte?
Quem deu ao terror o seu fatídico deleite
que nos tenta como uma escura felicidade?
Talvez no outro lado, junto aos eternos mananciais,
lá onde cabem os véus,
encontre o destruidor sob outra figura.
És tu, espírito do mal, a sombra de Deus?
O nocturno irmão gémeo de Deus?
Härdarna, 1927
DESPEDIDA
Queria despertar-te para uma desnudez como a de uma
noite de precoce primavera,
quando as estrelas se derramam
e a terra arde sob a neve que se derrete.
Queria ver-te cair uma só vez
nas trevas do caos criador,
queria ver os teus olhos como um espaço aberto de par em par,
dispostos a encher-se,
queria ver as tuas mãos como flores abertas,
vazias, novas, expectantes.
Vais-te e não te deste conta de nada disso.
Nunca cheguei até onde o teu ser jaz nu.
Vais-te e não levas nada de mim –
abandonas-me à derrota.
Lembro outra despedida:
arrojaram-nos do crisol como um só ser,
e ao separar-nos, já não sabíamos
o que era eu e o que eras tu…
Mas tu – como uma malga de cristal foste-te da minha mão,
tão acabado como uma coisa morta e tão alterado,
tão sem outras recordações como as impressões digitais,
que se lavam na água.
Queria despertar-te da amorfia de uma bruxuleante chama informe
que encontra no fim a sua forma viva, a sua própria…
Derrota, oh, derrota!
For trädets skull, 1935
NO FUNDO DA COISAS
Li no jornal que alguém tinha morrido, alguém a quem
conhecia de nome.
Ela vivia, como eu, escrevia livros, como eu, envelheceu e agora
está morta.
Imagina estares agora morto e ter deixado já tudo para trás,
angústia, medo e solidão, e a culpa implacável.
Mas há uma grande justiça escondida no fundo das coisas.
Todos temos uma graça a esperar – um dom que ninguém vai roubar.
De sju dödssynderna, 1941
OS SERENOS PASSOS QUE ME SEGUEM
Se escuto, ouço escarpar-se a vida
agora cada vez com maior rapidez.
Os serenos passos que me seguem –
morte, és tu.
Antes estavas muito longe –
eu queria-te demasiado.
Agora já não te desejo,
agora estás aí.
Morte querida, há algo na tua essência
que consola docemente:
como questionas se alguém se fez grande
ou desperdiçou toda a sua vida!
Morte amada, há na tua essência
algo que te deixa limpa e transparente:
aquilo que é igual nos maus e nos bons
tu pões a descoberto, e o desnudas.
Vem comigo e deixa que te dê a mão,
tranquiliza profunda e boamente.
Ao formoso fazes essencialmente grande,
fazes o feio pequeno.
É como se quisesses algo de mim.
Claro que queres uma dádiva:
uma estranha chavinha –
a palavrinha sim.
Sim, sim, eu queria!
Sim, sim, eu quero!
A teus pés deposito a minha devoção –
assim cresce a vida.
De sju dödssynderna, 1941
AS ÁRVORES
Vivas como nós
e distantes, tão afastadas
que a nossa palavra «compreender»
devém fumo vão e vento.
Profundamente inacessíveis
a pensamentos e sentidos,
ainda que a vossa casca se sinta rugosamente
agradável no nosso rosto.
Sem olhos resplandeceis
num sonho visual e floral.
Por meio de que instrumentos
conheceis o vosso esplendor?
Graças a que secreta
sabedoria criadora
sois parte do poder
dos sentidos e os aromas?
Recostados contra o tronco
passamos despercebidos,
não nos é permitido entrar
no vosso mundo interior.
Ou será que nos alcança, cautelosa,
uma porção da nossa essência
desconhecida para nós
e digna de ser temida?
Ainda que nascidos sem dúvida
dos mesmos antepassados,
não vemos nem um rebate
do nosso instante comum.
Demasiadas aventuras
nos separaram depois,
demasiado impossível de conhecer
é o nosso simples chão.
Talvez no espere no entanto
um encontro futuro
nesse caminho em que a vida
torna a ser húmus.
Outra mão estendida
entre famílias separadas.
E damos graças à morte
por esta afinidade.
A matéria, sempre emprestada,
devolvemo-la.
Fundia-a no vosso molde!
Tomai e dai!
Troquemo-la entre nós
como dons amistosos,
profundas, formosas, desconhecidas
vidas fraternas.
De sju dödssynderna, 1941
Versão minha - © Amadeu Baptista
Karin Boye (1900-1941). Nasceu em Gotemburgo. Licenciada em Letras. Foi professora. Membro da revista Spektrum. Colaborou no jornal Arbelet. Poeta e prosadora. A sua vigorosa personalidade marcou profundamente a vida literária sueca dos anos 30 do século passado.
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