RITA TABORDA DUARTE, POETA CONVIDADA
O dicionário ao lado
Consola saber que já não são,
nunca foram, etéreas as palavras nem efémeras.
Ocupam este espaço vazio na realidade da mesa
e têm peso as palavras têm chão.
Pegasse eu num feixe delas com estas mãos recurvas,
estas mãos unidas os dedos tão cheios de unhas
− não deixasse eu cair nunca no rosto do mundo este
punhado de letras longas dobras arestas finas...
e pudesse lançar-tas com tanto amor e violência
que te doessem as palavras contra o peito…
Escrevi-te o meu poema, dicionário ao lado,
silabar de laje e de granito na gravidade da mesa.
Mas nem ao de leve te raspou a pele
sopro fátuo e lasso agilidade de sombra sob o sol.
Sequer vento emaranhando o teu cabelo.
(in colóquio-letras, nº 182 )
Só Cotão e Pó
Revolvi os cantos ao dicionário: só cotão e pó
as palavras largam sempre tanto lixo…
procurava uma palavra que te desse…
guardara-a, para ti, quando viesses
mas não sei já onde a pousei talvez
entre uma metáfora
morta e um oximoro gasto, muito velho,
dizendo qualquer coisa como esta : «a palavra
que mais diz é aquela que calamos
no silêncio», ou outra coisa, até, mais banal ainda
Da metáfora, não encontrei nem sobras,
devo tê-la perdido, por aí, no discurso vulgar do dia a dia.
Acontece-me , acontece-me muito, esquecer-me de palavras
ao fundo da carteira,
desfeitas entre bilhetes de metro, sob o peso dos dias,
das chaves do carro.
Passo tanto tempo a perder palavras como o tempo que gasto em procurá-las
Depois… o cansaço de as inventar de novo, de as soletrar de novo,
tropeçando em consoantes nas vogais …
Tão difícil, voltar a dizer as palavras que perdemos.
Mentindo-lhes sentidos novamente…
Por isso percorria à pressa o dicionário, hoje
Para procurar uma outra palavra que te desse,
ainda antes que chegasses, de manhã
A palavra que te queria dar, perdia-a
não há tempo agora de a reescrever assim à pressa…
manhã alta, já, deves estar mesmo aí, a aparecer
Revolvi o dicionário: tanto pó na esquina das palavras.
Sempre tudo em desalinho: nem uma sílaba consigo ter em seu lugar.
Trago a língua tão desarrumada, tanto desleixo, sempre tudo tão sem jeito
E tu, aí, quase à beira de chegar
Tirei uma mão cheia de palavras ao acaso
Concha, lago, ternura, um pedaço arrancado à bruta da palavra amor
Mas tu chegaste-me entretanto, com um perfeito ramo de frases feitas
fingiste até nem reparar na confusão e
deitámo-nos assim mesmo na minha palavra ainda por dizer
(inédito)
Nódoa branca em meu vestido claro
Sempre este querer de violência tanta
e esta crença de que o canto estale
ACC
O meu desejo é esta palavra branca no meu vestido claro.
Nem se nota, eu sei; o vestido é quase transparente
e o desejo de te ter, uma leveza de sombra, só, a amanhecer ainda.
Névoa ligeira, como um salpico ao de leve no tecido:
não chega para o manchar, mesmo se lhe dá a luz de frente.
Tens os barcos que atravessam a saudade
o rio em frente amodorrado ao cais.
O Tejo é o único rio imóvel, que nunca passa
nunca nos passa:
régua de azul inteiro no rebordo da tarde.
E tens a calçada tão branca e tão viva
a estalar na retina; não te deixa ver
deter mais nada, quanto mais esta palavra debotada
embainhada no meu vestido claro
É teu, o lugar do crime, eu nem estou,
eu nunca estive lá, sou só esta vaga mancha grácil
engordurada e baça; não seduz não envergonha .
Nem só de lágrimas vive o homem, sussurrei-te e escureceu
e nem arrefecera ainda, eu até nem tinha nenhum frio.
Mas tu despiste o teu casaco de homem
e pousaste-mo nos ombros abafando
a transparência branda do meu vestido nu
E, de olhos no rio que não passava,
apagaste, distraído, a minha nódoa clara da luz do sol.
(in colóquio-letras, nº 182)
© Rita Taborda Duarte
Rita Taborda Duarte, nasceu em Lisboa, em 1973. É professora adjunta convidada na Escola Superior de Comunicação Social. Faz crítica de poesia e ensaio em diversas publicações da especialidade (Relâmpago, Colóquio–Letras, etc.). Desde 2010 que é membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian, publicando com assiduidade no site Rol de Livros da mesma instituição (www.leitura.gulbenkian.pt).
Em 1998, publicou o seu primeiro livro de poesia, Poética Breve, editado pela Black Sun Editores, a que se seguiram Na Estranha Casa de um Outro: Esboço de uma Biografia Poética (Asa, 2006) subsidiado pelo Ministério da Cultura, com uma bolsa de criação literária e Dos Sentidos das Coisas (Editorial Caminho, 2007), com co-autoria de André Barata. Está representada em diversas antologias literárias.
Em 2003, vence o Prémio Branquinho da Fonseca, atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo semanário Expresso, com o original A Verdadeira História de Alice e desde essa data tem publicado regularmente para crianças e jovens.
Além de vários livros publicados para crianças, tem publicados os seguintes títulos de poesia: Poética Breve, Black Sun Editores, 1998; Na Estranha Casa de Um Outro: Esboço de uma biografia poética, Lisboa, Asa, 2006; Experiências Descritivas: Dos sentidos das coisas/Círculos, Lisboa, Editorial Caminho, 2007 ( Co-autoria de André Barata); Papelada, Lisboa, Homem do Saco, 2013 ( plaquette de poema único)
Sem comentários:
Enviar um comentário