NICOLAU SAIÃO, POETA CONVIDADO
5 POEMAS INÉDITOS
ATÉ AO FIM
Quando entrei na sala vi num relance que o meu demónio
estava deitado
A boca entreaberta, um resto de baba no queixo de quem
Dorme justamente como um anjo.
A janela pouco cerrada e o sofá chegado
à plena luz
A manta já antiga azul e amarela roçava o chão como se
Tivesse havido por ali discreta borracheira dominical.
Congeminei
Que ele antes de reentrar vindo do etéreo passara
por uma tasca ou que
aceitara a oferta toma lá dá cá de um qualquer maltrapilho
Cheio àquelas horas entradotas de uma modesta
fraternidade bebedora.
Olhando bem via-se-lhe contudo no rosto
uma vaga felicidade
Dizendo melhor uma centelha de contentamento
ou alegria, ou
assim como que a sensação de quem vira o mundo
no seu lugar real
Vamos a ver, no fundo a lonjura dominava
Como se visse o cavalheiro por uns binóculos ao contrário
Cheirava um pouco a flores e vagamente
a desodorizante
Um livro tombara no chão, ficara à espera
aberto anquilosado
Quando abri a porta da cozinha vi sobre
o fogão um tacho com
Uma iguaria qualquer com que se entretivera
certamente antes de cair no leito vencido
talvez pelas canseiras das últimas horas.
Se minha mãe estivesse viva decerto
lhe teria aplicado um raspanete
Uma expressão em dialecto se calhar
um tabefe levezinho. O meu pai
Poria na cara aquele sorriso suave dos dias sem idade
Lá fora estrepitavam ruídos da cidade barulhenta
Contos do dia e da noite, o irresistível
fascínio do desconhecido.
Sentei-me, a angústia apoderara-se de mim. Uma frase estranha
Revirava-se-me na cabeça.
Quando olhei pela janela o horizonte
pareceu-me uma linha ténue.
Mais tarde, pensei, falaríamos a preceito. Ou antes
por entre dentes eu diria talvez
coisas sobre a grande aurora ou então sobre a memória
Sibilina dos sobreviventes imutáveis.
AQUI, ALI, ACOLÁ
Não se vai longe correndo
não se vai longe
a carne é fraca
o vento quebra ao nosso lado as visões os sinais
as presenças de gente e de lugares de grandes
árvores solitárias
de portas que se abrem e de rostos sobre o seu
rodapé de suas cicatrizes na madeira em que se bate
não se vai longe
dói por dentro a memória
o desejo
os grandes passos as passadas ferindo lume
chispas mordentes de cavalo ou de avestruz no deserto
nas ruas imprecisas
mortalmente atentas
Não
não se vai longe
o peito ressoa
a mão grita
o olho soluça
e é por dentro um motor sufocando nas bermas
o nosso crescimento implume
Por isso é necessário
e vivente como andar de coruja ou leopardo
como rapariga apaixonada num café de vila remota
ir devagar
passo a passo
devagarinho como um ribeiro na pradaria entre
árvores de fruto e plantas campestres
pé ante pé
com os dedos adejando com os lábios
rebrilhando
e soletrar fragmentos de uma palavra serena
sonora
breve
Ir devagar
como se adormecêssemos
como se habitássemos um bosque
como se de novo chegássemos à primeira luz.
VISLUMBRE
No bote, os polícias jazem amorosos
no virar da semana
com as suas adoradas em passeio
naquele jardim com o lago meio adormecido
em que depois de remarem, como os cisnes do parque
como a lua se tivesse caído na água
ficam no vazio, olhando os bancos e a relva
dessas horas em que as ramagens cobrem
os corpos de quem descansa e os ausentes
comem sua merenda debaixo de outras folhas
em diferentes lugares.
No barco ou ao balcão do quiosque eles sustêm
na sua mão a mão de alguém que os prolonga.
Onde estão as crianças e a música? Quando não é manhã
os barcos vogam
em busca de um horizonte em que haja noite
dentro mesmo dos corpos, até do peito fendido
em que eu contemplo as silhuetas seculares
quase no fim dos bosques onde depois se amam
e se interrogam por um nada
bocejando aqui e além.
Tocas com essa mão a primeira palavra. E notas
no céu negro figuras como havia
na tua adolescência sussurrante. Agora
olhas ao pé do castelo um pequenino embrulho
e foi há muito tempo que o sentiste
uma e outra hora e ainda uma outra hora, essas
que de repente param e tu sorris
na evidencia que te chama. E dizes, como se nada fosse
- Ouve, jovem polícia, o teu barco quedou-se ali
e por entre as pálpebras semicerradas
o teu amor esvoaça. Oito nove de noventa e seis
repara bem
o taumaturgo testa a tua sede. O teu raro momento
tão plácido e completo como um hall sem ninguém.
Vamos embora, meu Senhor.
Seco e magro como um vislumbre
que estimula os quartos ao derredor
andas de continente em continente
e os risos aumentam e aumenta
o choro ao canto do jardim ensolarado.
Uma palavra em calão e uma reza, uma reza
saindo sem que o soubessem alegremente das trevas.
ANUNCIAÇÃO
As mulheres do vento parado como um planeta extinto
as mulheres doentes as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas
entre mim e o céu
Entram pela minha boca e censuram-me docemente
Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa
Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes
Dizei-me mulheres onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais
Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar
A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da manhã e o frio subindo até às portas como um animal
a morrer.
LEVANTAMENTO DE RANCHO
O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos
Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia
Doce como os sonhos o meu sargento desculpe
Mas é tão estúpido tão escalabitano tão
A norte de Bafatá ou mesmo
Castelo Branco o meu sargento é um nabo
Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha
O meu coronel desculpe mas tive de o abater
O gajo não entendia que os sonhos eram os outros
Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias
E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores
Há um ar em silencio extremamente melancólico
O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura
De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a
Já havia muitos meses que me lavava a roupa
Junto ao mercado do Pixiguiti chorava
Era sofrida como uma mulher
Doce e tão calada como um objecto partido
O meu capitão desculpe mas tive que o abater
É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos
O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão
De serviço o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras
O meu major desculpe mas era chegada a hora
Tantos anos depois ficaram todos em fila
A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado
Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda
De modo que foi assim fiz levantamento de memórias
E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar
Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão
Ficaram todos em fila pois então
Mesmo que em sonhos e agora estes não são
De ovos e farinha como almejava nesse tempo
Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar
Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba
E já agora que estamos com a mão na outra massa
Que é como quem diz com a pata na G3
O meu general vá à fava palavra de civil tão sem galões
O meu general é um nabo como na caserna se dizia.
(do livro inédito 'Escrita e o seu Contrário')
© Nicolau Saião
Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Reside no agregado populacional de Atalaião.
Participou em mostras de Arte Postal em diversos países. Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O armário de Midas” (Moçambique, 2005), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar).
No Brasil foi editada em finais de 2006 pela Ed. Escrituras uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) e, em 2011 o tomo em prosa “As vozes ausentes”. Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002) que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).
Tem colaborado em espaços culturais de vários países: “Saudade”, “Bíblia”, “Bicicleta”, “Callipolle”, “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Revista 365”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “DiVersos” (Portugal/Bruxelas), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Espacio/EspaçoEscrito”, “A Xanela”(Espanha), “La Lupe”, “Decires”(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile), “Blanco Móvil” (México), “Mele” (Honolulu).