Caffé Paradiso: um vaso azul com uma avenca em cima de uma mesa
avisa que a partir deste bosque que brilha todos os nós de angústia
se desatam.
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A inconfundível eternidade da água.
A excepcional eternidade da música.
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A exemplo de Mantegna, estamos em Veneza
e somos trespassados por arte despedida,
tal como S. Sebastião.
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Ah, o sirocco, esse vento que chega com uma moldura negra
para assediar Veneza – tal como o amor, como vimos
em Thomas Mann, via Visconti, o sirocco
é uma experiência religiosa que, no caso,
a música de Mahler ampliou.
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Há-de ser possível tocar o chão de San Giorgio Maggiore com a polpa
dos dedos para que neles permaneçam as impressões digitais de Veneza.
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Carnaval de Veneza: animais sumptuosos
que nos obrigam a respirar
a sombra.
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Do que não reclamamos: esta paixão de obscura
volúpia sob o impulso silente dos putti
que do tecto do quarto nos observam
como se fôssemos anjos
em queda livre.
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Poucas árvores em Veneza, mas não há
mais densa floresta do que esta.
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Não me favorece o escrutínio da ausência,
nem as noites mal dormidas – o meu coração
abatido sabe que participou em assaltos,
mas que tudo perdeu na extensa deriva da batalha,
sem mais poder fazer do que regressar ao livro
para erguer a decifração do enigma,
tal como aconteceu com Veneza, que tudo desbaratou
sobre a paixão, ainda que nenhuma ruína patenteie
e o seu amor pertença a um reino inefável.
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Adormeces enfeitiçada pelo sortilégio de Veneza
enquanto velo o que de ilegível dorme em ti.
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Disse Napoleão que seria um Átila para Veneza.
Mais cedo do que tarde os bárbaros acabam por chegar
para cobrir de luto o sortilégio das cúpulas douradas
e dos beijos fogosos.
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A haver uma fractura poética que me sobressalte neste lugar
é saber como milhares de náufragos foram despojados
das suas túnicas brancas para que oscilassem os pallazos
sobre as águas mansas.
…
Numa parede da gare marítima de Veneza,
vi escrito: Te odio, Tomasino! Também num muro
de Ballymurphy Seamus Heaney leu:
«Haverá vida antes da morte?». Ah, os poetas
andam engalfihados numa luta amorosa
e o mundo cai em arrasadoras ciladas.
…
A despedida anuncia-se por um céu branco
e ondas intempestivas no casco do navio.
Fico na amurada a ver Veneza a fundir-se
aos meus empolgamentos, sem saber
se fiz esta viagem pelo rescaldo esmagador
dos nossos devaneios ou se o que aconteceu
foi apenas a breve pulsação de um delírio.
Ah, talvez o indizível não seja mais que este
estremecimento a que de longe aceno
pelas regras indeclináveis do abandono,
que nos retém, ainda.
Inédito - © (poemas e fotos) Amadeu Baptista
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