segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Mais 14 Fragmentos de Veneza




Caffé Paradiso: um vaso azul com uma avenca em cima de uma mesa
avisa que a partir deste bosque que brilha todos os nós de angústia
se desatam.

A inconfundível eternidade da água.
A excepcional eternidade da música.


A exemplo de Mantegna, estamos em Veneza
e somos trespassados por arte despedida,
tal como S. Sebastião.


Ah, o sirocco, esse vento que chega com uma moldura negra
para assediar Veneza – tal como o amor, como vimos
em Thomas Mann, via Visconti, o sirocco
é uma experiência religiosa que, no caso,
a música de Mahler ampliou.


Há-de ser possível tocar o chão de San Giorgio Maggiore com a polpa
dos dedos para que neles permaneçam as impressões digitais de Veneza.


Carnaval de Veneza: animais sumptuosos
que nos obrigam a respirar
a sombra.


Do que não reclamamos: esta paixão de obscura
volúpia sob o impulso silente dos putti
que do tecto do quarto nos observam
como se fôssemos anjos
em queda livre.


Poucas árvores em Veneza, mas não há
mais densa floresta do que esta.


Não me favorece o escrutínio da ausência,
nem as noites mal dormidas – o meu coração
abatido sabe que participou em assaltos,
mas que tudo perdeu na extensa deriva da batalha,
sem mais poder fazer do que regressar ao livro
para erguer a decifração do enigma,
tal como aconteceu com Veneza, que tudo desbaratou
sobre a paixão, ainda que nenhuma ruína patenteie
e o seu amor pertença a um reino inefável.


Adormeces enfeitiçada pelo sortilégio de Veneza
enquanto velo o que de ilegível  dorme em ti.


Disse Napoleão que seria um Átila para Veneza.
Mais cedo do que tarde os bárbaros acabam por chegar
para cobrir de luto o sortilégio das cúpulas douradas
e dos beijos fogosos.


A haver uma fractura poética que me sobressalte neste lugar
é saber como milhares de náufragos foram despojados
das suas túnicas brancas para que oscilassem os pallazos
sobre as águas mansas.


Numa parede da gare marítima de Veneza,
vi escrito: Te odio, Tomasino! Também num muro
de Ballymurphy Seamus Heaney leu:
«Haverá vida antes da morte?». Ah, os poetas
andam engalfihados numa luta amorosa
e o mundo cai em arrasadoras ciladas.


A despedida anuncia-se por um céu branco
e ondas intempestivas no casco do navio.
Fico na amurada a ver Veneza a fundir-se
aos meus empolgamentos, sem saber
se fiz esta viagem pelo rescaldo esmagador
dos nossos devaneios ou se o que aconteceu
foi apenas a breve pulsação de um delírio.
Ah, talvez o indizível não seja mais que este
estremecimento a que de longe aceno
pelas regras indeclináveis do abandono,
que nos retém, ainda.


Inédito - © (poemas e fotos) Amadeu Baptista
 
 
 

 

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