segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Mais 12 Fragmentos de Veneza



Uvas negras deram lugar a este valpolicela que alegrou as nossas
libações nocturnas – mas não precisávamos de vinho para flutuar
em Veneza.


Os ladrões do imprevisto são uns rapazes que com berros
hidrópicos chegam a Veneza para agregar o tumulto ao infinito.
E assim é que Veneza a lua lhes entrega, para suprir mais furtos.


A treva bruxuleante,
a negra pupila dos teus olhos.


Apoucados que estamos pela libido
torcemos o coração até não poder mais.
De loggia em loggia e de espelho em espelho
vamos a procurar a beleza que, afinal,
está diante de nós a arrebatar-nos.
Fascina-nos esta luz sobre a paisagem,
a turva luz que faz dos vaticínios
o sonho (non sequitur) em que não acreditamos,
mas faz de nós pessoas transbordantes.


Ainda não aprendi a ver, ainda não aprendi
do mundo senão as profundas fissuras, os reflexos, a voz
hirsuta do mar, as casas, os cães, os cegos
que impõem as mãos sobre clarões para poderem ver.
Mas não subscrevo qualquer plano para salvar Veneza,
por saber que é impossível salvar a salvação.


A única vanguarda que me interessa é a vanguarda
do vento – por ele venho à estátua apreender
as formas sobre o mármore e a estranheza
com que o informe partilha a dádiva com a dúvida
para que fique a vida presa por um fio de chuva.


Depois dos turistas japoneses, chegaram os turistas alemães
com os seus relinchos desmesurados pelas ruas. Não sei se a despropósito
lembraste Carlos de Habsburgo, rei de Espanha e Imperador
do Sacro Império Romano-Germânico, que ao seu séquito muitas vezes
comentava: «falo castelhano com Deus, italiano
com as mulheres, francês com os homens
e alemão com o meu cavalo».


A afundar-se nas águas vinte e três centímetros por século
não tarda que Veneza pertença ao reino da Atlântida
– fascínios há a que se não escapa nunca.


Não sabemos os nomes de todos os que lograram exercer o poder sobre Veneza,
mas sabemos os nomes que já teve Veneza: Heneti, Veinziani,
Venecia, Veneciae, Venegia, Venegia, Venessia, Veneti, Venetia,
Venetiae, Venetici, Venetie, Venettia, Venexia, Venezia, Veniesia,
Veniexia, Venitiano.


A poesia: uma onda que morre na praia e outra
que nem à praia chega.

Digo que não há outro modo de pressentir a transparência
senão a partir de um coração transparente
na transparente Veneza – o mais é
a desconhecida transparência renitente
que o bravio Adriático retém nos dias claros.


Com um borsalino castanho escuro passou por nós Joseph Brodsky,
recém-chegado do sestiere de Cannaregio, perto da estação.
Por um túnel de nebbia se sumiu, quem sabe se a cismar
nalguma inefável mulher de Perugino de novo viva,
ou em como a água é o tempo que não cessa, primeira marca
e última.

Inédito - © Amadeu Baptista

                                                                                                Foto - © Pedro Amaral

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