segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Mais 14 Fragmentos de Veneza



Só tu sabes se o mar chegará aos cavalos de S. Marcos
ou se serão os cavalos de S. Marcos a chegar ao mar.
Talvez um dia desfaças o enigma: e voe o mar, e voem os cavalos.


Sob o peso da travessia da Ponte dei Suspiro
perguntas-me se haverá algo mais leve que um suspiro
e não sei que te responda, enquanto me sorris.


Para que serve o arco-íris que sobre a Laguna se formou
senão para sabermos que a inquietação é valiosa?


Canaletto abriu sobre Veneza as mais belas janelas
para que usufruíssemos das gôndolas e da luz
particular que as circunda. Tu chegas ao Hotel
e fechas as venezianas da única janela do quarto
para que eu usufrua da escuridão que te ilumina.
Ah, como se confina o mundo ao que se vê
e ao que não se vê.


A que distância fica Veneza do alto fogo do Etna?
Estando aqui, nada do que queima me deixa de interessar,
porventura por ti, que és o fogo mais abrasivo
que me foi dado conhecer. O fósforo ilumina-te o rosto,
ardem as pontes, irisam-se as ondas, as cúpulas,
as ilhas que ao longe delimitam a circunscrição do fascínio,
estes degraus húmidos e inflamados pela tua presença,
que desço como um guardião do que está perdido.


Todos os ingredientes do amor permanecem em Veneza.
Os amantes apressam-se a vir aqui surpreendê-los, a morada
pura que ainda resta, ainda que, como se sabe, tudo seja impuro.
Por isso os amantes partem com a recordação de terem conhecido
o estado de graça, com os olhos cheios de brilhos, encantados
até pelo desencanto. Ah, Veneza e os amantes, entidades lunares,
com destinos frangíveis.


Veneza é o lugar em que tudo pode acontecer, por desabridos
que possamos ser nesta viagem quase imaginária
em que procuramos a paz e só a desavença nos persegue.
A um poeta pouco cabe além de enaltecer a luz
para poder guardar-te em recônditos abismos, a bruma
que se estende pelos canais, os festões que enganalam as janelas,
a memória da noite  em que nos perdemos entre Torcello
e San Michele, a ilha dos ciprestes de onde Ezra Pound nos acena
e Stravinsky compõe a última sagração da primavera, com os ossos
para sempre abandonados ao infinito alvoroço da eternidade.
Longe de casa, numa cidade corroída pela água,
o que fazemos, com as lágrimas nos olhos?


A intratável fortuna que nos acompanha: transitarmos
entre a mais doce lascívia e a mais negra
melancolia.


Na montra da livrari Acqua Alta está um livro
de Saba – a cumplicidade com que nos olhamos reconhece
que naquele livro está o mundo.


É talvez equívoca a doçura carnal
de Veneza – mas até sob a bruma se pressente.


Imagens cegas que mãos desconhecidas
ampararam no circuito da sombria luz das galerias
do Palácio dos Doges – passamos por elas
como por ninhos vazios, onde um coração gelado
pulsa.


Os mosaicos, o santoral de ouro, os púlpitos de mármore,
os anjos rutilantes no telhado bizantino da basílica, o baldaquino
e a abóbada em que o Pentecostes se manifesta, com as concrescíveis línguas
de fogo sobre as cabeças – neste mistério,
o que significa um beijo, o claro céu, a tua mão na minha?


Nenhuma colina, escassa terra, mas uma grande
extensão de torres e cornijas, que o sol favorece
com dóceis pigmentos. Agora sei porque veio em 1562
Arcimboldo a este mercado comprar um cesto
de verduras a um velho de turbante
e com ele levou legumes magníficos para erigir em Veneza
o viço inverosímil.


A não mais do que dois passos da Universidade,
no Campo Santa Margherita, sob um toldo vermelho,
 um homem canta, afasta de nós o cálice da ameaça.


Inédito - © Amadeu Baptista



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